Número 451 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 9 de setembro de 2020

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«Nenhuma presença é mais real que a falta.» (Myriam Fraga) *

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Antonio Cicero
Antonio Cicero



Amigas e amigos,

Poeta, filósofo, ensaísta e compositor, Antonio Cicero Correia Lima (Rio de Janeiro, 1945) estreou na poesia brasileira com o livro Guardar (1996). De lá para cá, publicou mais dois títulos: A Cidade e Os Livros (2002) e Porventura (2012). Em 2017 Antonio Cicero foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.

O poeta é também incansável blogueiro. Mantém, desde 2007, o blog Acontecimentos, no qual apresenta refinada seleção de poemas das mais diversas procedências, além de discussões acerca de arte e poesia.

Antonio Cicero é o poeta em destaque nesta edição do poesia.​net. A minisseleta de poemas apresentada ao lado foi extraída do volume Estranha Alquimia, antologia poética do autor recém-lançada pela Editora Penalux, de Guaratinguetá-SP, e organizada pelo poeta Diego Mendes Sousa com a colaboração do escritor Fabio de Sousa Coutinho.

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O primeiro poema, “Guardar”, é talvez um dos mais conhecidos com a assinatura de Antonio Cicero. Nele se destaca o gosto argumentativo e categorizante que o poeta-filósofo cultiva em muitos de seus textos. “Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / do que pássaros sem voo”. Um poema para se ler com cuidado e atenção.

Mas não se engane com o tom altamente reflexivo de “Guardar”. Antonio Cicero consegue também mesclar esse mesmo tom com os influxos da realidade imediata. É o que lê no quarteto “Leblon”. Aí o menino carioca, criado de frente para o mar, lembra que nem tudo se resume ao clichê (visualmente verdadeiro) da Cidade Maravilhosa: “atrás há um muro e aquém do olhar / pulsam sangue e morro e mata e breu”.

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No soneto “O Grito”, o sujeito lírico se sente como um mitológico Prometeu (“Estou acorrentado a este penhasco / logo eu que roubei o fogo dos céus”) perdido no cotidiano moderno das “urbes formigantes”. Descrente de tudo, ele ouve o conselho de um amigo, que lhe recomenda fazer uma excursão por uma empresa que aceita o pagamento em prestações.

Blackout” é outro poema que respira o ar da metrópole. Nele surge o problema da privacidade para quem mora em prédios contíguos, exposto aos olhares de mil janelas. A preocupação, neste caso, é expressa por um poeta: “Que voyeur me espiaria?”, pergunta. Será que algum vizinho indiscreto seria capaz de ler seus versos na tela do computador?

No último poema surge, mais uma vez, uma figura da mitologia grega. É “Ícaro” que salta para o céu e, inevitavelmente, dá adeus a tudo enquanto mergulha no mar. Em certo sentido, repete-se aqui a cena de “Leblon”, mais acima. Naquele poema, o olhar do menino se dirige ao céu, mas a realidade o confronta com a terra e todos os intrincados problemas que ela esconde, bem às costas de quem mira o azul.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Prometeu metropolitano


• Antonio Cicero


              



Jean Hildebrant - Al aire libre
Jean Hildebrant, pintora estadunidense, Al aire libre


GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
do que pássaros sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarde um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.



Jean Hildebrant - Apache song
Jean Hildebrant, Canção apache


LEBLON

Para Adriano Nunes

O menino olha para o mar:
lá no fundo ele se funde ao céu;
mas atrás há um muro e aquém do olhar
pulsam sangue e morro e mata e breu.



Jean Hildebrant - Blue
Jean Hildebrant, Azul


O GRITO

Estou acorrentado a este penhasco
logo eu que roubei o fogo dos céus.
Há muito tempo sei que este penhasco
não existe, como tampouco há um deus
a me punir, mas sigo acorrentado.
Aguardam-me amplos caminhos no mar
e urbes formigantes a engendrar
cruzamentos febris e inopinados.
Artur diz “claro” e recomenda um amigo
que parcela pacotes de excursões.
Abutres devoram-me as decisões
e uma ponta do fígado mas digo:
E daí? Dia desses com um só grito
eu estraçalho todos os grilhões.



Jean Hildebrant - Gold and scarlet
Jean Hildebrant, Ouro e escarlate


BLACKOUT

Passo a noite a escrever.
Do lado de lá da rua
poderia alguém me ver,
daquele prédio às escuras,
em frente ao meu, e mais alto.
Que voyeur me espiaria?
De interessante, só faço
escrever. Ele veria
decerto a parte traseira
do computador; talvez,
daquela outra janela,
avistasse, de viés,
o lado esquerdo da minha
face de perfil; jamais
entretanto enxergaria
certos versos de cristal
líquido que, mal secreto
com o sal do meu suor,
e já anunciam segredos
só meus e de algum leitor
que partilhará comigo
o paraíso e o desterro,
o pranto que vem do riso,
o acerto que vem do erro.
Disso tudo, meu vizinho
nem de longe desconfia.
Mas e se ele, tendo lido
meus lábios, que pronunciam
o que na tela está escrito,
perceber-se desterrado
não só do meu paraíso:
do meu desterro, coitado?
E se ele a tudo atentar
e por inveja e recalque
me der um tiro de lá?
Melhor fechar o blackout.



Jean Hildebrant - Sunlight and solace
Jean Hildebrant, Luz do sol e consolação


ÍCARO

Buscando as profundezas do céu
conheceu Ícaro as do mar

Adeus poeira olímpica
grãos da Líbia
barcos de Chipre

Adeus riquezas de Átalo
vinhos do Mássico
coroas de louro
flautas e liras

Adeus cabeça nas estrelas
adeus amigos
mulheres
efebos
adeus sol:
ouro algum permanece.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Antonio Cicero
      •  Todos os poemas:
      in Estranha Alquimia (antologia poética)
      org. Diego Mendes Sousa, colab. Fabio de Sousa Coutinho
      Penalux, Guaratinguetá, 2020
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* Myriam Fraga, “Calendário: Março”, in Femina (1996)
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* Imagens: quadros da pintora estadunidense Jean Hildebrant