Número 496 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 12 de outubro de 2022

poesia.net header

«Porque os corpos se entendem, mas as almas não.» (Manuel Bandeira) *

Compartilhe pelo WhatsApp

facebook 
Fabrício Oliveira
Fabrício Oliveira



Amigas e amigos,

O autor em foco nesta edição, Fabrício Oliveira, é, com certeza, o poeta mais jovem já publicado no poesia.​net. Nascido em 1996, em Santo Estêvão-BA, Oliveira é licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de Feira de Santana, onde atualmente cursa o mestrado em Estudos Literários.

Os poemas exibidos aqui integram o livro Viração, lançado este ano pela Editora Patuá. Mas esta não é a primeira coletânea assinada por Fabrício Oliveira. Dois anos atrás, ele deu a público, pela mesma editora, o volume Gramática das Pedras. Assim, aos 26 anos, o autor já reúne ponderável experiência editorial.

Uma característica marcante — aliás, mais do que isso, fundamental — na poesia de Fabrício Oliveira é que ele constrói seus artefatos líricos sempre a partir da realidade. Não há, em Viração, praticamente nenhum momento de pura abstração ou de mero exercício formal.

Outro traço essencial da criação poética de Oliveira é sua vinculação à gente de sua terra, sua vida, seus afazeres e sofrimentos cotidianos. Observador desde criança e dono de ouvido sempre pronto a ouvir as histórias de seu povo, ele baseia muitos de seus textos em relatos ouvidos de ancestrais, pessoas do campo. O próprio autor me contou esse detalhe, em conversa que mantivemos para falar sobre o livro Viração.

Ele revela que teve a oportunidade de conviver bastante com bisavós longevos, centenários, e deles e delas ouviu muitos relatos sobre a vida do povo em sua região. Até hoje mantém forte proximidade com uma avó. Portanto, sua poesia tem também um traço autobiográfico. Funda-se não somente em experiências vividas pelo autor, mas também em notícias fornecidas por pessoas de sua comunidade.

•o•

Mas já é hora de passarmos aos poemas de Fabrício Oliveira.

No primeiro texto, “Linhagem”, que tem apenas três versos, o poeta faz questão de dizer de onde vem e afirma sua vinculação aos ancestrais. Em “Fazenda Dique”, o poema seguinte, o narrador, menino, é enviado às pressas à casa de Francelina Parteira, certamente para que esta venha acudir alguma mulher em vias de dar à luz.

O texto descreve Francelina Parteira: “mulher alta, galhofeira, / pegou (com as mãos surradas de manhãs / lavrando os roçados) / muitos natimortos”. E ao falar em nascimentos, o sujeito lírico sugere que as crianças nascidas ali já nascem com “um peso nas costas” e associa esse peso ao “furor dos ancestrais/ mortos nas senzalas da Fazenda Dique”. O “furor dos ancestrais”, citado em três dos poemas mostrados aqui, parece funcionar como um totem, uma referência quase sagrada em todo o livro.

A personagem Francelina Parteira aparece várias vezes nos poemas de Viração, inclusive em “Histórias do Brasil”, o último texto ao lado. Neste poema, o narrador, criança, também vai à casa de Francelina convocar seus serviços obstétricos. Mas o que se tem, neste caso, não é um parto comum. Trata-se na verdade de uma história de violência brutal contra a mulher. Uma tragédia.

•o•

Leiamos agora o poema “Senzala”, dedicado a Aniceta, tataravó do poeta, escravizada. “Aniceta morreu no tronco enluarado”, diz o texto. Enquanto conta a história dessa ancestral, o narrador insere no texto pequenas lembranças da própria vida.

O poema “Riacho de Areia” apresenta uma descrição de um lugar no ambiente rural e de seus viventes. Aqui, o narrador lembra “o cheiro bom do massapê / onde meninos negros / que chupam mangas quase amargas / circunscrevem Áfricas, / num alfabeto de juremas secas, num sertão regido / por atabaques e pássaros-pretos”.

O penúltimo poema de nossa miniantologia começa com uma declaração de amor ao Paraguaçu, o maior rio genuinamente baiano, que nasce na Chapada Diamantina e deságua na baía de Todos os Santos. Diz o poema: “De todos os rios o mais musical é o Paraguaçu / porque ajuda meu coração a arfar e querer”. Mas o amor ao rio não apaga as sofridas origens históricas: “Minha cidade ainda tem hálito de açoites.// Minha cidade ainda tem nódoas da fome / que o vento escava nas pálpebras / dessas mulheres (descalças) / mais Viração que a Viração / onde até as casas têm fome”.

•o•

Após a leitura de Viração, penso que existe certo parentesco entre este livro de Fabrício Oliveira e o romance Torto Arado, do premiado autor Itamar Vieira Junior, também baiano. Não se trata de vinculação direta, mas ambos se baseiam em personagens rurais, todos negros, ambientados num lugar onde se escutam, a cada passo, profundos ecos da escravidão.

Viração já conquistou muito boas apreciações da crítica. No prefácio, o poeta e professor baiano Aleilton Fonseca escreve: Viração é uma metáfora perfeita: um sopro forte de poesia que se desdobra em lufadas de sentidos configurados pelo discurso de um autor muito consciente de suas origens e de suas escolhas estéticas".

Outros elogios vêm dos poetas cariocas Geraldo Carneiro e Alexei Bueno (este último autor do texto na orelha do livro), do poeta baiano Ruy Espinheira Filho e também do crítico gaúcho André Seffrin.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


•o•


Curta o poesia.​net no Facebook:

facebook


•o•



Compartilhe o poesia.​net no Facebook, no Twitter e no WhatsApp

facebook

Compartilhe o boletim nas redes Facebook, Twitter e WhatsApp. Basta clicar nos botões logo acima da foto do poeta.


O som da viração


• Fabrício Oliveira


              



Van Gogh - young-peasant-woman-with-straw-hat-1890
Vincent van Gogh, holandês, Jovem camponesa sentada com
chapéu de palha
(1890)


LINHAGEM

Tenho em minhas mãos o furor de ancestrais
e, no lugar da pele,
couro de atabaque.


FAZENDA DIQUE

O som da viração desta manhã lesou minhas retinas.

Enquanto corro por dentro da caatinga
para acordar Francelina Parteira
minha carne vai se rasgando
nas candeias,
nos espinhos de carandá,
nos espinhos de tucumã.

Meu grito (convulsão em estilhaços)
refaz o sertão de minha infância
nos olhos de um assum preto.

Francelina mora na mata do finado Lió
numa casa de taipas.
Sua voz é grossa e forte como as águas do Paraguaçu
voltando a brotar, em tempos de cheias.

Francelina Parteira, mulher alta, galhofeira,
pegou (com as mãos surradas de manhãs
lavrando os roçados)
muitos natimortos.
Muitas crianças
que nasciam com os pés rachados
como se o peso que traziam
nas costas
fosse demais. Mas esse peso
é o somatório do furor dos ancestrais
mortos nas senzalas da Fazenda Dique.

(Nascer é herdar os açoites e os açudes
onde lavaram a carne dos mais antigos).

Francelina Parteira pegou muito menino
nascendo com as gengivas podres,
uma língua de traças,
o umbigo queimado a ferrete
e os olhinhos se abrindo em rasgos de esporão
como se viver fosse destocar pastos.




Van Gogh - Portrait of a young peasant-1889
Van Gogh, Retrato de um jovem camponês (1889)


SENZALA

        Para Aniceta, minha tataravó, escravizada


Aniceta era escrava. Morou a vida toda
numa biboca, no fundo da Fazenda Boiadeira,
numa senzala, onde pariu
e também foi parida.

(Me lembro do som das mãos de Dona Butinha
cortando o umbigo do recém-nascído.
Me lembro que desde os cinco anos
eu pegava ponga
na carroça de Seu Tindole
cheia de monturo. Sonhos).

Lá longe, o juazeiro acolhe
trés meninas sessando areia
numa peneira de píndobas.

Aniceta morreu no tronco enluarado.

Um açoite atravessou seu olho
e entrou em minha carne.

Ainda ontem sonhei acordado
com os pés rachados de Aniceta
adubando a terra molhada.

Sonhei com Aniceta saindo da mata
(da finada Butinha)
metendo a nambu morta na algibeira
da saia.

O sol tatua um bem-te-vi
no olho da garota
que assunta o bulir das folhas
das árvores.
Aniceta viveu muito tempo sobre a terra
por ser a única dentro da senzala
que, de tardezinha,
tocava flauta de bambu
até as folhas das árvores
caírem comovidas.


RIACHO DE AREIA

Ante a sombra do Riacho de Areia,
vejo abelhas sem ferrões
fazendo a polinização nos olhos
e nos sonhos
de meninos negros que chupam mangas
quase verdes, quase amargas
sobre a porteira do curral
           aberta ao berrante.

Um imenso milharal seco
impregna de poeira as nuvens, o voo das aves;
e as sementes de capim
sob a terra germinam
        sem alarde.

Estevo de Zu, descalço,
dá banho num recém-nascido
cujo pranto ressoa tão longe
feito léguas de ventos na alma
e nas palmas forrageiras.

O som das mãos de Estevo de Zu
sobre as águas quase verdes
lembra um tambor
        ecoando nos porões
de minhas córneas, abertas
ao berrante e ao cheiro bom do massapê
onde meninos negros
que chupam mangas quase amargas
circunscrevem Áfricas,
num alfabeto de juremas secas, num sertão regido
por atabaques e pássaros-pretos.




Van Gogh - Madame Augustine Roulin-1899
Van Gogh, Senhora Augustine Roulin (1889)


FEMÍNEA

De todos os rios o mais musical é o Paraguaçu
porque ajuda meu coração a arfar e querer.

Tenho a força das mulheres lavrando o massapê
com um pequeno rasgo de serrote
sobre seus coraçóes em náuseas.

Minha cidade ainda tem hálito de açoites.

Minha cidade ainda tem nódoas da fome
que o vento escava nas pálpebras
dessas mulheres (descalças)
mais Viração que a Viração
onde até as casas têm fome.


HISTÓRIAS DE UM BRASIL

Os homens de minha infância batiam sempre nas mulheres, menos vô Dimiro e Liberato. Os outros batiam. Batiam com uma corda de laçar feita de couro. Batiam com os pulsos cerrados. Batiam com o cacho de licuri seco. Me lembro como se fosse hoje, João Grosso batendo no rosto e na barriga de Dolores, que pegou barriga fazia sete meses. Dolores foi obrigada a vir a pé lá da Fazenda Gameleira para o Campo Alegre, sangrando. Sangrando e chorando meia légua de muita dor, raiva, desesperança. Quando chegou em casa, Dolores estava branca feito os dentes de uma criança. Eu estava chupando o tutano dum boi. Fui interrompido com um cascudo, um pedido: vai correndo ligeiro na casa de comadre Francelina Parteira. Diz pra ela vir pegar a criança de Dolores. Avia, diacho! Mas a carreira foi em vão. Quando chegamos montados num jegue rufião, Francelina encangada em minha cintura — a criança estava morta. Francelina se benzeu, beijou a imagem de São Roque, que trazia no pescoço. Lavou as mãos numa tina. Enfiou as mãos dentro do ventre, tirou o natimorto. Cortou o cordão umbilical, com um pedaço de graveto. Colocou a criança numa gamela velha de fazer rapadura. Cobriu com folhas de bananeira. Enterrou. Enterrou no pé da cerca, à sombra do mugido das vacas.

O som do tapa no rosto de Dolores
ainda enche a casa de Seu Roxo.

As mulheres de minha infância sempre apanhavam.
Sempre tinham seus filhos mortos no ventre:
(por um cabo de enxada que batia
ou um marido que achava o feijão
aguado).
As mulheres de minha infância sempre apanhavam.

Sempre tiveram os rostos manchados
pelas mãos dos homens, pela raiva.





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Fabrício Oliveira
      in Viração
      Prefácio de Aleilton Fonseca
      Patuá, São Paulo, 2022
_____________
* Manuel Bandeira, “Arte de Amar”, in Belo Belo (1948)
______________
* Imagens: quadros de Vincent Van Gogh (1853-1890), pintor holandês