Número 495 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 28 de setembro de 2022

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«Sou poesia. Não sei me traduzir...» (Dante Milano) *

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Déborah de Paula Souza
Déborah de Paula Souza



Amigas e amigos,

Conforme a classificação muito usada pelo poeta e antologista Manuel Bandeira, a autora em foco neste boletim, a paulistana Déborah de Paula Souza pode ser considerada uma poeta bissexta, aquela que escreve ou publica de forma escassa e ocasional.

De fato, Déborah de Paula esteve aqui na edição n. 158 no já distante ano de 2006. Na época, ela havia publicado o livro Moça Mousse Musselina em 1982, pelas Edições Pindaíba, selo identificado com o que se chamou, nos anos 70 e 80, de poesia marginal.

Mas, como destaquei naquele boletim, os poemas de Déborah tinham muito mais do que a suposta “marginalidade”. O poeta e crítico José Paulo Paes ressaltou o poder de síntese da poeta e a sensualidade de seus versos, capazes de descobrir o “patético no cotidiano”. José Paulo Paes dixit.

Em 2006, a poeta revelava ter pronta uma coletânea poética chamada O Livro Vermelho. Talvez para comprovar a condição bissexta da autora, somente agora, em 2022, aquele livro, devidamente revisto e reestruturado, se materializa com o título Vermelho Vivo, publicado pela Editora Laranja Original, de São Paulo. Na verdade, a obra tem a data oficial de 2021, embora tenha saído neste ano.

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Portanto, o livro Vermelho Vivo permaneceu cerca de três décadas em gestação. Mas valeu a pena esperar. Nele estão reunidos textos com aparência despretensiosa, porém na verdade cheios de astúcias e reflexões. Ideias sobre o amor e suas peripécias; sobre o extenso estar-no-mundo, que envolve vida/morte, sanidade/loucura, nascer e morrer, realidade e magia; a palavra e suas centelhas que acendem a poesia e a psicanálise; a força da mulher e sua presença no amor e na paixão; e ainda os bichos, o corpo, o macho, a fêmea, a luz e a sombra. Enfim, um painel complexo muitas vezes pintado em versos enganosamente curtos e simples.

Exemplos disso são dados pelos três primeiros poemas de nossa miniantologia. “Reconciliação” tem dois versos e apenas quatro palavras: “depois de tudo/ veludo”. Que síntese poderosa! Tudo é suave, tudo é macio depois que os amantes fazem as pazes. Já “Individro” trabalha com as dificuldades do relacionamento amoroso, essa “lição da morte”. O parceiro, no entanto, “cintila tão lindo” exatamente onde dói, no próprio corte. Outro resumo magnífico.

Em “Vinho”, o encantamento das coisas, o veneno da beleza. A rosa vermelha “rouba a cena” e, como diz o poema, “nem sabe que é obscena”. Vermelho vinho, vermelha flor.

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No poema “O Mundo”, ergue-se um pequeno monumento ao amor, declarado como “o único lugar confortável” que existe. Mas não se veja nisso uma declaração ingênua. Confortável, sim, mas só depois de extraídos os espinhos. Ou seja, o amor acolhe, mas também fere.

Em “Do Corpo”, o eu lírico (feminino, conforme se pode ler nos adjetivos) se despe das roupas “vaporosas” da alma e entra em “estado de corpo”. Tem forma e peso e se sente a salvo de mistérios. “Agora sim fiquei possível”, declara. Ou seja, é impossível ser ou ficar em paz em “estado de alma” ou “estado de espírito”.

No poema seguinte, “O Peixe do Palácio”, aparece mais uma vez a difícil dialética do prazer e do pesar. “Escuta o grito das baleias/ o arpão e a harpa em mim”. Há, ao mesmo tempo, uma lança que fere e um instrumento musical que harmoniza canções no corpo e na alma. Do lado de fora, tudo parece completamente normal: “o coração está cheio de sangue/ a lágrima cheia de sal”.

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Agora, o poema que dá nome ao livro, “Vermelho”. Aqui, um estuário de fenômenos rubros: sol, sangue, placenta, vulcão e — tema candente em todo o livro — o amor. Por fim, como não poderia deixar de ser para uma poeta que milita profissionalmente na seara de Freud, vem o poema “Divã”.

Uma mulher se deita nesse divã numa sessão psicanalítica. Ela come o pão que o Diabo amassou, mas o Diabo não é tão ruim como se pinta: “(o pão era bom/ o cara sabia o que estava fazendo)”. Há também situações ridículas: queria mostrar uns filmes do Godard, e o que resultou? “Saiu aquele novelão”. Conclusão: “o caminho das eras é Eros” e “o amor é o amor é o amor/ a dor passa enquanto passa/ a maravilha não tem cura”.

Como diz a jornalista e ficcionista Leusa Araújo no posfácio de Vermelho Vivo, “Déborah ficou anos ‘à escuta’ da poesia para surgir intempestiva, exalando perfume e prazer de ‘criança brincando com navalhas’ (..)”. De fato, é isso que a autora faz: seus versos passeiam sobre o gume do aço e trazem de lá avisos, gritos — e beleza.

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Débora de Paula Souza (São Paulo, SP) é poeta, jornalista e psicanalista. Publicou Moça Mousse Musselina em 1982 pelas Edições Pindaíba. Trabalhou em diversas revistas femininas e, depois, voltou-se para a formação e o exercício da psicanálise. O livro Vermelho Vivo (2022) sai pela editora Laranja Original, de São Paulo.

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Vermelho vivo


• Déborah de Paula Souza


              



Anastasiya Matveeva - Ira-2015
Anastasiya Matveeva, pintora russa, Ira (2015)


RECONCILIAÇÃO

depois de tudo
veludo


INDIVIDRO

de mim não sei mais que um medo
nessa lição da morte

já você
cintila tão lindo
exatamente no vidro
exatamente no corte


VINHO

rosa vermelha no copo
nem sabe que é obscena

perfuma, abre
rouba a cena




Anastasiya Matveeva - Varechka-2013
Anastasiya Matveeva, Varechka (2013)


O MUNDO

o único lugar confortável no mundo
é o amor

depois que os espinhos
são retirados da pele
esse é o nome
de quase tudo


DO CORPO

agora sim fiquei possível
não sou mais vaporosa
sou coisa de pegar
minha matéria é morna
estou em estado de corpo
cheia de peso e forma
salva de mistérios outros


O PEIXE DO PALÁCIO

o corpo é pequeno
para o que acontece aqui
a pele sem contorno
essa água sem fim

escuta o grito das baleias
o arpão e a harpa em mim

engole o mar do japão
vê o peixe do palácio e o silêncio
radioativo da sabedoria oriental:

o coração está cheio de sangue
a lágrima cheia de sal




Anastasiya Matveeva - Adoncia
Anastasiya Matveeva, Adoncia


VERMELHO

o sol
o sangue
a flama
a tarde em chamas
a púrpura do olhar
que me derramas

morada incandescente
matéria al dente
placenta
mãe

tanto a fome
quanto a fúria
o vulcão e seu tremor
a vida e seus rebentos
a paixão e seus unguentos
a carne
o nascimento
o amor


DIVÃ

contou o que nem pensava
inventou próprias parábolas
sonhava que era pagã
enquanto a bíblia espreitava
afogada no mar vermelho

comeu o pão que o diabo amassou
(o pão era bom
o cara sabia o que estava fazendo)

queria projetar
uns filmes bacanas do godard
e saiu aquele novelão

Um dia chamou o xamã
o senhor austríaco há de compreender
que ela nasceu mexicana
é claro que entende as mulheres
— este mar aberto de sintomas
o céu, o inferno, o sexo, a terra prometida —
não sabe o que ele não entendeu

com furo por todo lado
seu plano inicial era morrer menos
queria tornar-se inabalável
mas o negócio não era bem assim
e resultou cheia de poros
sismógrafa cismando
a precisão dos cataclismas

sem modéstia
sente-se hoje preparada
até para o que não tem nome
— aos borbulhantes, as borbulhas —
o caminho das eras é eros
o caminho do errante é errar
(palavras dá como beijos
mas como se mede um contar?)

escuta
o amor é o amor é o amor
a dor passa enquanto passa
a maravilha não tem cura

        Para Heidi Tabacof




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Déborah de Paula Souza
      •  Todos os poemas:
      in Vermelho vivo
      Laranja Original, São Paulo, 2021
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* Dante Milano, “Poemas de um verso”, in Obra Reunida
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* Imagens: quadros da pintora russa Anastasiya Matveeva (1988-)