Amigas e amigos,
Conforme a classificação muito usada pelo poeta e antologista Manuel Bandeira, a autora em foco neste boletim, a paulistana Déborah de Paula Souza pode ser
considerada uma poeta bissexta, aquela que escreve ou publica de forma escassa e ocasional.
De fato, Déborah de Paula esteve aqui na edição n. 158 no já distante ano de
2006. Na época, ela havia publicado o livro Moça Mousse Musselina em 1982, pelas Edições Pindaíba, selo identificado com o que se chamou, nos anos 70 e 80,
de poesia marginal.
Mas, como destaquei naquele boletim, os poemas de Déborah tinham muito mais do que a suposta “marginalidade”. O poeta e crítico
José Paulo Paes ressaltou o poder de síntese da poeta e a sensualidade de
seus versos, capazes de descobrir o “patético no cotidiano”. José Paulo Paes dixit.
Em 2006, a poeta revelava ter pronta uma coletânea poética chamada O Livro Vermelho. Talvez para comprovar a condição bissexta da autora, somente agora, em 2022,
aquele livro, devidamente revisto e reestruturado, se materializa com o título Vermelho Vivo, publicado pela Editora Laranja Original, de São Paulo. Na verdade,
a obra tem a data oficial de 2021, embora tenha saído neste ano.
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Portanto, o livro Vermelho Vivo permaneceu cerca de três décadas em gestação. Mas valeu a pena esperar. Nele estão reunidos textos com aparência despretensiosa,
porém na verdade cheios de astúcias e reflexões. Ideias sobre o amor e suas peripécias; sobre o extenso estar-no-mundo, que envolve vida/morte, sanidade/loucura,
nascer e morrer, realidade e magia; a palavra e suas centelhas que acendem a poesia e a psicanálise; a força da mulher e sua presença no amor e na paixão;
e ainda os bichos, o corpo, o macho, a fêmea, a luz e a sombra. Enfim, um painel complexo muitas vezes pintado em versos enganosamente curtos e simples.
Exemplos disso são dados pelos três primeiros poemas de nossa miniantologia. “Reconciliação” tem dois versos e apenas quatro palavras: “depois de tudo/ veludo”.
Que síntese poderosa! Tudo é suave, tudo é macio depois que os amantes fazem as pazes. Já “Individro” trabalha com as dificuldades do relacionamento amoroso, essa
“lição da morte”. O parceiro, no entanto, “cintila tão lindo” exatamente onde dói, no próprio corte. Outro resumo magnífico.
Em “Vinho”, o encantamento das coisas, o veneno da beleza. A rosa vermelha “rouba a cena” e, como diz o poema, “nem sabe que é obscena”. Vermelho vinho, vermelha flor.
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No poema “O Mundo”, ergue-se um pequeno monumento ao amor, declarado como “o único lugar confortável” que existe. Mas não se veja nisso uma declaração ingênua.
Confortável, sim, mas só depois de extraídos os espinhos. Ou seja, o amor acolhe, mas também fere.
Em “Do Corpo”, o eu lírico (feminino, conforme se pode ler nos adjetivos) se despe das roupas “vaporosas” da alma e entra em “estado de corpo”. Tem forma e peso
e se sente a salvo de mistérios. “Agora sim fiquei possível”, declara. Ou seja, é impossível ser ou ficar em paz em “estado de alma” ou “estado de espírito”.
No poema seguinte, “O Peixe do Palácio”, aparece mais uma vez a difícil dialética do prazer e do pesar. “Escuta o grito das baleias/ o arpão e a harpa em mim”.
Há, ao mesmo tempo, uma lança que fere e um instrumento musical que harmoniza canções no corpo e na alma. Do lado de fora, tudo parece completamente normal:
“o coração está cheio de sangue/ a lágrima cheia de sal”.
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Agora, o poema que dá nome ao livro, “Vermelho”. Aqui, um estuário de fenômenos rubros: sol, sangue, placenta, vulcão e — tema candente em todo o livro — o amor.
Por fim, como não poderia deixar de ser para uma poeta que milita profissionalmente na seara de Freud, vem o poema “Divã”.
Uma mulher se deita nesse divã numa sessão psicanalítica. Ela come o pão que o Diabo amassou, mas o Diabo não é tão ruim como se pinta: “(o pão era bom/
o cara sabia o que estava fazendo)”. Há também situações ridículas: queria mostrar uns filmes do Godard, e o que resultou? “Saiu aquele novelão”.
Conclusão: “o caminho das eras é Eros” e “o amor é o amor é o amor/ a dor passa enquanto passa/ a maravilha não tem cura”.
Como diz a jornalista e ficcionista Leusa Araújo no posfácio de Vermelho Vivo, “Déborah ficou anos ‘à escuta’ da poesia para surgir intempestiva, exalando
perfume e prazer de ‘criança brincando com navalhas’ (..)”. De fato, é isso que a autora faz: seus versos passeiam sobre o gume do aço e trazem de lá avisos,
gritos — e beleza.
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Débora de Paula Souza (São Paulo, SP) é poeta, jornalista e psicanalista. Publicou Moça Mousse Musselina em 1982 pelas Edições Pindaíba.
Trabalhou em diversas revistas femininas e, depois, voltou-se para a formação e o exercício da psicanálise. O livro Vermelho Vivo (2022) sai pela
editora Laranja Original, de São Paulo.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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