Dante Milano
em retrato pintado por Candido Portinari (detalhe)
Caros,
Andei relendo a poesia do carioca Dante Milano (1899-1991).
Esse autor já passou duas vezes pelo poesia.net ―
edição n. 34, de agosto/2003, e
edição n. 241, de fevereiro/2008 ―, mas tem sempre algo novo a nos dizer.
Não vou me estender sobre a vida e as características da poesia de
Milano. Creio que o essencial foi dito nos dois boletins anteriores. Repetirei
apenas que, se fosse por ele, seus poemas nunca teriam sido publicados. Era
recolhido, avesso à publicidade e à mundanidade literária. Amigos é que
publicaram seu único livro, Poesias (1948), quando o autor já beirava os
50 anos. Além de poesia, Dante Milano escreveu traduções e ensaios. Em sua obra
reunida, há três cantos do Inferno, de Dante Alighieri, vertidos para o português,
38 poemas traduzidos de As Flores do Mal, de Baudelaire, além de
vários estudos literários.
•o•
Em minha recente leitura de Dante Milano, o poema
que mais me conquistou a atenção foi "Fuga do Centauro". Trata-se, antes de tudo,
de um texto em que o poeta dá mostras de seu domínio da rima e do ritmo, ao lado
de prodigiosa imaginação plástica. Descreve o embate de amor e ódio entre um
centauro ― figura fantástica, meio homem, meio cavalo ― e uma fêmea. Uma
centaura? Esta palavra não existe.
Segundo a mitologia, os centauros são guiados por instintos e sempre se
envolvem em sangrentas brigas e batalhas. Portanto, não parece estranho que a
fêmea, “nua e transparente”, tente, “com mãos finas”, domar o centauro-narrador.
Só que as mãos finas, sugestão de carícia e aconchego, destoam de suas intenções
dominadoras e guerreiras. É como se fossem negaças, ardis para seduzir. Entra aí a atração sexual.
No final do embate,
o parceiro recorre aos seus atributos mais selvagens: desfere patadas e foge,
aos relinchos, com a parceira-inimiga a cavalgá-lo. Seria uma relação
sadomasoquista entre centauros? Sabe-se lá.
Esse embate entre figuras
semi-humanas é um dos mais fantásticos enredos imaginários entre os muitos
criados por Dante Milano. No poema "Reaparição", também reproduzido neste
boletim, uma mulher surge da pura fantasia. E o narrador, consciente, declara: “Fui eu que a imaginei! É minha!”.
Mas voltemos aos centauros. Creio que essa cena quase dantesca ― não
deste Dante, do outro, o florentino ― esteja ligada à maneira como o poeta vê o
relacionamento amoroso. Aliás, a visão de Dante Milano tem pontos de contato com a
concepção de
Drummond. “Dois amantes que são? Dois inimigos”, diz o homem de Itabira. Talvez,
por isso mesmo, Milano tenha dado aos amantes-combatentes de "Fuga do Centauro" uma natureza
obviamente semianimal para ressaltar a possível selvageria e o
encontro/ desencontro entre os dois.
Na poesia de Dante Milano, esse
desencontro não está apenas no amor: envolve também a amizade e até a
convivência humana. É como se o indivíduo o tempo todo experimentasse a sensação
de carência. Há momentos de luminosa fulguração e êxtase, como nas paixões, nos
congraçamentos amorosos, nas experiências de profundas amizades e de união
social. Mas são apenas lampejos, e sempre volta a eterna busca de plenitude.
Não é à toa que o poeta procura compreensão e acolhimento até no reino
mineral. Veja-se o que ele diz sobre a pedra: “Figura inerte que não sente nada,
/ Corpo que dorme e a que me abraço em vão”.
•o•
No soneto “Náufrago”, o poeta exibe sua
mestria ao descrever o extremo desespero de quem está se afogando no mar. Mas
aqui também as águas não parecem pertencer exatamente ao mar, mas a um estado de
aflição experimentado em terra. Minhas suspeitas vêm dos seguintes versos: “Sem
ter a que amparar-me, cambaleio, / Sem ter onde pisar, falseio os passos”.
Cambalear e dar passos em falso não são propriamente movimentos de quem está
nadando ― ou tentando nadar ― para se livrar das ondas.
Mais adiante, o
texto fornece outra pista contraditória. “Minha tristeza mede-se por léguas /
Que venço, não em terra, mas nadando / (...) / Batendo-me de peito contra
mágoas”. Pode-se entender, portanto, que esse afogamento é mais um estado
d’alma, um terrível desconforto emocional. Uma tristeza que tem a extensão do
oceano e mede-se em léguas.
Os dois últimos versos reforçam as
suspeitas: “Sôfrego, trôpego, gesticulando / Como um náufrago em vão se agarra
às águas”. Quer dizer: ele compara esse profundo mal-estar à condição de alguém
que se debate para não ser tragado pelas águas. Enfim, o poema não diz “sou um
náufrago”, e sim “sou como um náufrago”.
•o•
Até agora, todos os
poemas de que tratamos têm, de uma forma ou de outra, uma pegada metafísica. De
fato, a poesia de Dante Milano é marcada por esse viés do pensamento abstrato.
Mas isso não significa que o poeta nunca desça ao mundo objetivo. Ele também
produziu poemas bem terra a terra. Você pode encontrar alguns nos dois outros
boletins dedicados ao poeta carioca e também em “A Um Mendigo”, aqui ao lado.
Este é um poema longuíssimo, que se estende por várias páginas. Aqui
está somente o trecho inicial. A apresentação do personagem é precisa e cruel.
Primeiro, o mendigo (“esquivo, sujo, roto”) é comparado a um gato. Depois,
rebaixado a
rato de esgoto. E em seguida: “E de fato és um bicho, / Quando catas nas latas /
Uns restos, pondo as patas / E o focinho no lixo”. Patas e focinho. Chocante,
porém verdadeiro.
No primeiro boletim sobre a poesia de Dante Milano,
transcrevi um poema, “Vozes Abafadas”, que apresenta um cenário de guerra.
Comentei a respeito dele: “Definitivamente, não é um texto para corações
delicados e sonhadores”. Repito a frase agora em relação a esse mendigo.
•o•
PARA LER DANTE MILANO
Há duas fontes para quem quiser conhecer a
poesia de Dante Milano. A primeira é uma antologia, disponível nas lojas. A
outra, é a obra completa, uma publicação fora de comércio que talvez só seja
encontrada em bibliotecas ou sebos.
1. Melhores Poemas Seleção de Ivan
Junqueira Editora Global, São Paulo, 1998
2. Obra Reunida
Organização e estabelecimento do texto: Sérgio Martagão Gesteira Academia
Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2004.
Um
grande abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
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A fuga do centauro
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Dante Milano
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Ismael Nery, Eva (1923)
O NÁUFRAGO
Gestos inúteis que não deixam traços
Faço, e as ondas me afogam no seu seio.
Uma parece que me parte ao meio,
Outra parece que me arranca os braços.
Sinto o corpo quebrado de cansaços,
E num exausto, sufocado anseio,
Sem ter a que amparar-me, cambaleio,
Sem ter onde pisar, falseio os passos.
Minha tristeza mede-se por léguas
Que venço, não em terra, mas nadando
No caminho do mar que não dá tréguas,
Batendo-me de peito contra mágoas,
Sôfrego, trôpego, gesticulando,
Como um náufrago em vão se agarra às águas...
Ismael Nery, Composição Surrealista (1929)
FUGA DO CENTAURO
Surpreendi-a numa gruta,
O corpo fosforescente
Como uma Santa! Porém,
Rindo, quase com desdém,
Do meu êxtase inocente,
Toda nua e transparente,
Sob o véu, numa impudente
Postura de prostituta.
Receoso, tentei fugir.
Ela pegou-me das crinas,
Em minhas costas montou
E meus flancos esporeou.
Quis domar-me com mãos finas.
Ah, que tu não me dominas!
Logo aflaram-me as narinas
E comecei a nitrir...
Fui beijá-la e dei dentadas.
Havia sangue em seu gosto.
Espanquei-a com carícias,
Massacrei-a de delícias.
Arrastei-lhe o corpo exposto,
Nua, o gesto descomposto,
E pus-lhe as patas no rosto.
— Ela dava gargalhadas.
Estatelada no chão,
Saía dela um calor
De forno, que a consumia,
Um hálito de agonia
E de esquálido suor.
E, vendo-a perder a cor,
Sentia nela o sabor
De toda carne: extinção.
Afinal me libertei
Do seu espantoso abraço
E larguei-a quase morta.
Esvaída, a boca torta,
As mãos hirtas, o olhar baço.
Afastei-me, firme o passo,
Respirando um novo espaço,
Vitorioso como um rei.
Ela ergueu-se e, de mãos postas,
Pediu-me, ao ver-me partir,
Que jamais a abandonasse.
Tinha lágrimas na face.
A princípio, eu quis sorrir:
Voltar, depois de fugir?
E fugi, mas a nitrir,
Com ela nas minhas costas...
Ismael Nery, Duas Irmãs (c.1924)
A UM MENDIGO
Envolto num capote
preto que te foi dado,
passas todo curvado
Sem que ninguém te note.
És, entre a multidão,
Alguém tão diferente
Que nem pareces gente;
Mais pareces um cão.
Esquivo, sujo, roto,
Mais pareces um gato;
Menos que um gato, um rato
Saído de um esgoto.
E de fato és um bicho,
Quando catas nas latas
Uns restos, pondo as patas
E o focinho no lixo.
Sujo e magro, és o expulso
Cão faminto. Só a rua
Te acolhe: um ser avulso
Qualquer. A rua é tua,
Essa rua cuspida
E por todos pisada.
Que é a verdadeira estrada
Por onde passa a vida.
(...)
Ismael Nery, Adalgisa e o Artista (1930)
REAPARIÇÃO
Alguém bate, de leve. Entreabro a porta:
Aparição noturna, vem sozinha.
O seu vestido é a nuvem que a transporta.
Penso: Fui eu que a imaginei! É minha!
— A casa é pobre, digo. E ela: — Que importa?
Reconheci-a. Do passado vinha.
Visão de outrora, eu a julgava morta.
Respirando-a, em meus braços a sustinha.
— Que queres?, sussurrou-me. E ébrio de a ver:
— Diante de ti, que mais hei de querer?
Ela sorriu-me com seu ar tristonho
E deu-me um beijo de hálito sublime,
Um beijo de sabor que não se exprime...
Ó meu recôndito, invisível sonho!
PEDRA
Pedra, coisa do chão, face parada,
Indiferente à carícia da mão,
Figura inerte que não sente nada,
Corpo que dorme e a que me abraço em vão.
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