Número 506 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 12 de abril de 2023

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«O paraíso sempre foi perdido.» (Roberval Pereyr) *

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Alexandre Marino
Alexandre Marino



Amigas e amigos,

O boletim desta quinzena destaca o poeta mineiro Alexandre Marino (Passos, 1956) fixado em Brasília. Marino já esteve aqui no poesia.​net na edição n. 201, no já distante ano de 2007. Desta vez, ele retorna com poemas de seu livro mais recente, Terra Sangria, lançado em 2022 pela Editora Penalux.

Nesta coletânea, escrita durante a pandemia, o autor declara ter usado a poesia como “ferramenta contra o pesadelo”. Sim, um pesadelo de enormes proporções: além da pandemia, o poeta elenca uma série de escombros e ruínas, como a difícil vida nas cidades brasileiras, as guerras do dia a dia, as desigualdades, desastres ecológicos e sociais.

Não é à toa que o poeta veste a capa de áugure moderno e começa assim o primeiro poema, “Horóscopo”: “Todas as horas são trágicas./ Abre-se a janela / e se anuncia a tempestade. / Despeja-se o dia / repleto de más notícias”. Atenta a esse clima sombrio, a poeta Mariana Ianelli diz, num dos dois prefácios do livro: “Cá estamos, numa terra que nos é dolorosamente familiar, à primeira vista, em sua desabrida sangria. (...) O poeta nos rememora esse universo, leva-nos pela música do poema a uma harmonia incorrespondente com seu teor de pandemônio: segredo da poesia”.

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Além do exercício poético-astrológico de Alexandre Marino, selecionei mais cinco poemas como amostras de Terra Sangria. O segundo poema, “As Guerras”, parece comprovar a afirmação do verso “Todas as horas são trágicas”. Trata-se de um texto cujo tema é o brutal assassinato, no Rio de Janeiro, do jovem imigrante congolês Moïse Kabagambe, em janeiro de 2022.

O poema fala diretamente com a vítima: “As guerras jamais acabam, Moïse, / as guerras te perseguem / como sombra. / O mar. Que beleza é essa / que desaparece diante de teus olhos, / as dores de teu corpo estirado / que esfria aos poucos / como as areias na madrugada?”. Kabagambe e sua família, vale lembrar, vieram para o Brasil em 2014, fugindo de uma guerra civil que se desenrola na República Democrática do Congo (Congo-Quinxassa) desde 2012.

Vem a seguir o poema “Os Vivos e os Mortos”. Aqui, sob o impacto da pandemia, o poeta escreve: “A diferença / entre um homem vivo / e um homem morto / é só da boca para fora”. O choque da morte domina tudo e constrange a mente dos vivos como um pesadelo palpável, terrivelmente real.

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Em “A flor-cadáver”, o poeta parte de informações sobre a planta (Amorphophallus titanum), cuja inflorescência, conhecida como "flor-cadáver", exala o aroma de carne em decomposição. No texto, esse mau cheiro “semeia a cizânia” entre as espécies vegetais. Mas na verdade o poema não está falando de plantas. O desassossego vem de fato do que só se revela no último quarteto: “A água do riacho já secou, / o jardim morre de veneno e de dores. / Para acabar de vez com toda a vida / só falta avançarem os tratores”.

O poema seguinte se mantém no ambiente da floresta. “Amoin Aruká” é uma elegia que lamenta a destruição de um povo da região amazônica. “Está bem morto / o guerreiro Amoin Aruká / último homem do povo Juma / último dos sete sobreviventes / do massacre do Rio Assuã”.

O poema trata do falecimento (de covid, em fevereiro de 2021) do indígena Aruká Juma, que tinha entre 86 e 90 anos. Aruká, último homem do povo Juma, sobreviveu em 1964 ao massacre de 60 indígenas em sua aldeia, em Rondônia. Deixou três filhas, também do povo Juma, mas casadas com homens de outro povo, da etnia Uru-eu-wau-wau.

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O derradeiro poema da seleção é “Vapores Rubros”. Nele, embora a atmosfera permaneça quase irrespirável e sombria, acende-se um pequeno arco-íris. “Os espíritos da floresta / imunes ao genocídio” e “Os vapores rubros da Amazônia” remetem mensagens “aos tristes jardins urbanos / onde a esperança / hiberna entre cinzas”. Tomara que os habitantes próximos a esses jardins, que formam a maioria da população, saibam receber esses avisos.

É exatamente nesse tímido arco-íris, nessa nesga de esperança entre cinzas, que a escritora Maria Valéria Rezende, também prefaciadora de Terra Sangria, localiza o trabalho do autor. Diz ela: “Precisamos de ajuda, precisamos dos poetas e de sua capacidade de transmutar as palavras para dizer o indizível. É o que faz Alexandre Marino nestas páginas”.

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Natural de Passos-MG, Alexandre Marino (1956-) envolveu-se desde cedo com a literatura. Na adolescência, em parceria com amigos, fundou a revista Protótipo, que teve sete edições em três anos. Depois, mudou-se para Belo Horizonte, onde fez os cursos de jornalismo e publicidade. Lá, entre 1979 e 1981, publicou seus dois primeiros livros de poesia: Os Operários da Palavra e Todas as Tempestades. Nessa época o poeta adotou o estilo consagrado nos anos 70, vendendo seus livros em bares, restaurantes e filas de teatro.

Em 1982, Marino transferiu-se para Brasília, onde vive até hoje. Além dos títulos de estreia, seus outros livros são: Terra Sangria (Penalux, 2022); Hiatos (Patuá, 2017); Exília (Dobra, 2013); Poemas por Amor (Varanda, 2007); Arqueolhar (LGE, 2005); e O Delírio dos Búzios (Varanda, 1999).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Cicatrizes
• Carlos Machado

Carlos Machado-CicatrizesAmigas e amigos: nesta semana, lançarei em São Paulo novo livro de poesia, Cicatrizes, publicado por uma empresa também novíssima em folha, a Balaio Editorial.

Quando: sábado, 15/04 das 16h às 19h.
Onde: Bar Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471 - Vila Madalena
São Paulo - SP


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Contra o pesadelo

• Alexandre Marino


              



Serebriakova - tata-portrait-in-the-costume-of-harlequin-1921
Zinaida Evgenievna Serebriakova, pintora russa, Tata - Retrato com fantasia de Arlequim (1921)


HORÓSCOPO

Todas as horas são trágicas.
Abre-se a janela
e se anuncia a tempestade.
Despeja-se o dia
repleto de más notícias.
Voam folhas secas
da última árvore abatida.
Voam pássaros e borboletas
pela rua desconhecida.
Voam palavras
em rádios e redes invisíveis
com a promessa de um péssimo dia.
Quanto veneno
em cada jorro da ventania.
Mas o sangue da cidade
contaminado por vírus, bactérias, porcarias
traz um momento novo
em sua vida.
Uma conjunção de estrelas,
chances para o amor, planos de viagem,
força interior.
É preciso esperar
pela surpresa na próxima esquina,
planetas em harmonia.
Construa a sua própria utopia,
neste dia que desperta
repleto de más notícias.
Não se assuste com os trovões,
são apenas bombas.
Mais uma guerra se noticia.
Voltamos ao cadafalso
e no fim nos salva a cavalaria.
O mundo tem barulhos demais, rumores, gritarias,
mas quando for insuportável o alvoroço
ainda será possível o suicídio,
todavia.


AS GUERRAS

O Congo está em guerra,
o Brasil está em guerra,
o mundo sempre esteve em guerra
e o mar é lindo.
As areias da praia estão quentes
porque brilha o sol.
Moïse fugiu de muitas guerras
e queimou os pés na praia.

É lindo o mar,
o mesmo que ainda guarda
os mortos da travessia.

As guerras jamais acabam, Moïse,
as guerras te perseguem
como sombra.
O mar. Que beleza é essa
que desaparece diante de teus olhos,
as dores de teu corpo estirado
que esfria aos poucos
como as areias na madrugada?

O Congo está em guerra,
mas você se livrou da guerra.
O Brasil está em guerra,
nas praias e ruas,
praças e barracos toscos.
Cada iate que desfila no mar,
cada brasileiro gentil que te aborda
está em guerra.

Por isso você está morto, Moïse.
Por isso a areia sangra
o sangue que era teu.




Serebriakova - anna-akhmatova-1922.jpg
Zinaida Evgenievna Serebriakova, Anna Akhmatova (1922)


OS VIVOS E OS MORTOS

A diferença
entre um homem vivo
e um homem morto
é só da boca para fora

O homem vivo
perplexo
se cala
ao contemplar os corpos empilhados
nos cemitérios
onde brilha ao sol
a placa:
— Não há vagas —

Já os homens mortos
não deixam dormir
os vivos

Do fundo de sua morte
emitem o estrondo
que vai além das palavras.


A FLOR-CADÁVER

      A floresta perdeu o seu silêncio.
        David Kopenawa

O jardim perdeu o seu silêncio
e a pauta musical dos bem-te-vis,
desde que brotou a flor-cadáver
em meio às ervas daninhas.

Com medo de ser vista
a sumaúma se encolhe toda.
Não olhe nos olhos das orquídeas,
elas sentem uma tristeza profunda.

A flor-cadáver semeia a cizânia
e seu fedor sufoca os perfumes,
abelhas abandonaram as lavandas,
jasmins têm saudades dos vaga-lumes.

É tanta a tristeza das sibipirunas,
que elas, coitadas, estão corcundas.
A copaíba não encontra a paz
e as samambaias nem choram mais.

A dama-da-noite tem depressão
e passa toda a noite a soluçar.
Já não perfuma o caminho dos insones.
Não há canto de amor dos sabiás.

A água do riacho já secou,
o jardim morre de veneno e de dores.
Para acabar de vez com toda a vida
só falta avançarem os tratores.




Serebriakova - portrait-of-mrs-beilitz-1941
Zinaida Evgenievna Serebriakova, Retrato da Sra. Beilitz (1941)


AMOIN ARUKÁ

Está bem morto
o guerreiro Amoin Aruká
último homem do povo Juma
último dos sete sobreviventes
do massacre do Rio Assuã

Comerciantes de Tapauá
reuniram suas forças armadas
que atiraram nos Juma como se fossem macacos:
sessenta índios mortos
e as castanheiras do território estão salvas

Amoin Aruká
ainda se lembrava das almas decapitadas
espalhadas na floresta
corpos dos índios devorados por porcos-do-mato
em mil novecentos e sessenta e quatro

Amoin Aruká
era ele e mais quatro em dois mil e dois
dos quinze mil índios Juma
do início do século vinte

Amoin Aruká
foi exterminado aos poucos
oitenta ou noventa anos vividos e sobrevividos

Mas agora Amoin Aruká está bem morto
o último guerreiro do povo Juma.


VAPORES RUBROS

O céu que ameaça cair
consola a terra em coma
e despeja como orações
as palavras emudecidas
de cento e cinquenta idiomas.

Revoltos rios voadores
viajam entre deuses e anjos
e envolvem a Terra em brumas.
É tempo de tempestades
sobre as sobras da humanidade.

Os espíritos da floresta,
imunes ao genocídio,
recolhem as lágrimas da terra
para sanear as imundícies
e ressuscitar os seres vivos.

Os vapores rubros da Amazônia
levam os odores da chacina
aos tristes jardins urbanos
onde a esperança
hiberna entre cinzas.





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Carlos Machado, 2023



• Alexandre Marino
   in Terra Sangria
   Penalux, Guaratinguetá-SP, 2022
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* Roberval Pereyr, "A Outra Visão", in O Súbito Cenário (1996)
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* Imagens: obras de Zinaida Evgenievna Serebriakova (1884-1967), pintora russa.