Número 505 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 29 de março de 2023

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«A vida — na vida só há ida, / não há retorno no que me torno.» (Ronaldo Costa Fernandes) *

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Adriane Garcia
Adriane Garcia



Amigas e amigos,

A escritora mineira Adriane Garcia tem-se revelado uma das poetas mais ativas na cena literária brasileira. Autora já conhecida aqui no poesia.​net, ela retorna nesta edição, trazida pelo seu novo livro, A Bandeja de Salomé (Caos&Letras, 2022). Curiosamente, esta é uma coletânea bilíngue. Os versos de Adriane são apresentados, lado a lado com as versões em espanhol, escritas pelo tradutor peruano Manuel Barrós.

Em A Bandeja de Salomé, Adriane retoma a inspiração bíblica (ou parabíblica), já exercitada em seu livro Eva-proto-poeta (Caos&Letras, 2020), este baseado no mito de Lilith, a primeira mulher do mundo — mulher autônoma que, aliás, não nasceu da costela de um homem. Agora, com Salomé, a autora vasculha a Bíblia e extrai de lá mais mulheres que formam a população do volume.

Cada poema nos apresenta uma personagem bíblica, do Velho ou do Novo Testamento. São relatos de violência, depreciação, machismo e horror. Enfim, esta é, até hoje, a história das sociedades patriarcais.

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Para esta edição do boletim, selecionei cinco mulheres entre as retratadas por Adriane. A primeira está no poema “Os Destroços de Tamar”. Localizemos Tamar. A história dela vem do Gênesis, capítulo 38. Viúva de Er, filho de Judá e neto de Jacó, Tamar foi dada como esposa ao irmão de Er, Onã, que se recusava a ter filhos com ela. Por isso, segundo a Bíblia, Deus matou Onã. Outra vez viúva, ela esperava que, conforme a tradição, o sogro lhe desse como marido o filho mais novo. Mas o sogro não fez isso.

Tamar, então, disfarçou-se de prostituta e manteve relações íntimas com Judá, o sogro. Ficou grávida. Quando Judá soube de sua gravidez, ordenou que ela fosse apedrejada e depois queimada. Contudo, ao saber que era o pai da criança, exclamou: “Ela é mais justa que eu”. Tamar teve gêmeos, um dos quais, Fares (ou Perez) se tornaria ancestral do famoso rei David. O poema diz: “Tamar é só mais uma daquelas que precisam dormir / Com um olho aberto e o outro fechado”.

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O texto seguinte é “A Terrível História da Concubina do Levita”. De novo, procuremos o contexto na Bíblia. Esse episódio encontra-se no livro dos Juízes, capítulo 19. A concubina (ou seja, amante, manceba ou até prostituta) é vendida pelo pai a um senhor de posses, o levita — quer dizer, membro da tribo de Levi. A moça segue seu amo. E vem o poema: “E no caminho / Na casa em que se hospedam / Invasores querem / O corpo do senhor / Mas ele te oferece: / É carne boa / Eu mesmo a amacio / Todos os dias / (E eles te moem) / Até a morte”.

Pensa você, leitora, que a morte é o fim de todos esses horrores? Nada disso: o levita, dono da finada, “Retalha seu corpo / Em doze partes / E distribui / Às doze tribos / Do verdadeiro deus / Para mostrar a elas / Que é preciso uma guerra / Que ensine / Definitivamente / A respeitar / Uma propriedade”.

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Observem que a propriedade do levita, como se trata de um bem material, uma coisa, não tem nome. Também não tem nome a mulher do próximo poema, “O Método da Mulher de Ló”. Tanto ela como as filhas são identificadas pelo nome do patriarca. No texto, Adriane Garcia supõe que a mulher de Ló, ao fugir de Sodoma, tem um plano. Ela olha para trás, desobedecendo à recomendação dos anjos. “Mas me tornar uma estátua de sal / (perdoem-me por não aguentar mais, minhas filhas) / Me pareceu mais rápido / Menos doloroso / Do que acompanhar aquele homem / Vendo o que eu via / Todos os dias / Dentro da minha casa”.

Portanto, temos aí mais uma interpretação para o misterioso “olhar para trás” dessa mulher. Seria quase um suicídio, diante de atos ignóbeis sofridos e presenciados por ela no ambiente doméstico.

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O poema seguinte é “O Ódio de Herodias”. Mais uma vez, voltemos à Bíblia. Agora, estamos no Novo Testamento. Herodias é a mulher de Herodes Antipas, rei da Judeia. Segundo os evangelhos de Marcos e Mateus, João Batista, cristão, estava preso e foi executado por intervenção de Herodias e de sua filha, Salomé. Contam os evangelistas que Salomé dançou para Herodes (que não era seu pai) e este, entusiasmado, lhe prometeu tudo que ela quisesse. Ela consultou a mãe e pediu-lhe a cabeça de João Batista, que enfim lhe foi entregue numa bandeja. Daí vem o título do livro de Adriane: A Bandeja de Salomé.

E Herodias? Ela recebeu das mãos da filha a cabeça de João Batista. Mas por que teria feito esse pedido brutal? Mais uma vez, a criatividade de Adriane Garcia dá uma resposta. Conforme o poema — leiam, por favor —, Herodias odeia a confusão entre deus e Estado, proposta pelo Batista.

Passemos agora para o último poema ao lado, “A palavra de Maria”. Esta é talvez a personagem mais conhecida do livro: Maria, a mãe de Cristo. Ela fala exatamente de seu misterioso encontro com “ele”, do qual resultaria a gestação daquele que a Bíblia chama de “filho de Deus”: “Quando ele veio / Infinitamente mais forte do que eu / Eu não disse a ele / Não quero // Sabendo que ele não dependia / Da minha permissão para nada”.

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Maria, Herodias, a mulher de Ló, a concubina do levita e Tamar são apenas cinco mulheres da população reunida em A Bandeja de Salomé. Mas todas merecem ser lidas, relidas e divulgadas. É a vida das mulheres que, contada a partir de antigas histórias ou lendas, reflete-se terrivelmente no espelho de hoje.

A miniantologia ao lado é muito restrita, diante do rico universo feminino criado neste livro. Considere-se, por exemplo, que a mesma Tamar, a que se finge de prostituta, depois — segundo as “escrituras” de Adriane Garcia, em outro poema não citado aqui  —, escreve uma carta ao sogro Judá, revelando que ele é o pai do filho que ela espera. Um detalhe: durante o contato íntimo com o sogro (isso está no Gênesis), Tamar guardou consigo o anel de chancela, o cordão e o cajado dele, itens que usaria depois para provar o contato íntimo e, por conseguinte, a paternidade do filho.

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Adriane Garcia (Belo Horizonte, 1973) já esteve aqui no boletim nas edições n. 422 (2019), n. 389 (2017) e n. 334 (2015). É graduada em História pela UFMG e especializou-se em Arte-Educação na UEMG. Sua obra poética reúne os títulos A Bandeja de Salomé (2022, Caos&Letras); Eva-Proto-Poeta (2020, Caos&Letras); Garrafas ao Mar (2018, Penalux); Embrulhado para Viagem (2016 - Coleção Leve um Livro, orgs. Ana Elisa Ribeiro e Bruno Brum); Enlouquecer é Ganhar Mil Pássaros (2015, e-book, Vida Secreta); O Nome no Mundo (2014, Armazém da Cultura); Só, com Peixes (2015, Confraria do Vento); e Fábulas para Adulto Perder o Sono (2013, Biblioteca do Paraná).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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LANÇAMENTO

Cicatrizes
• Carlos Machado

Carlos Machado-CicatrizesAmigas e amigos: em abril, lançarei em São Paulo novo livro de poesia, Cicatrizes, publicado por uma empresa também novíssima em folha, a Balaio Editorial.

Quando: sábado, 15/04 das 16h às 19h.
Onde: Bar Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471 - Vila Madalena
São Paulo - SP


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A bandeja de Salomé

• Adriane Garcia


              



Óscar Domínguez - oscar.dominguez-compsosition.with.bull.and.piano-1935
Óscar Domínguez, pintor espanhol, Composição com touro e piano (1935)


OS DESTROÇOS DE TAMAR

Tamar é só mais uma daquelas que precisam dormir
Com um olho aberto e o outro fechado
Caso ouça os passos do pai
Caso o padrasto vá beber um copo d’água
Caso o tio venha fazer uma visita
Caso o primo a convide para brincar
Caso um amigo da família venha jantar em casa
Caso o irmão lhe apareça na porta do quarto

É só mais uma que precisa temer
Andar na rua
Entrar em um banheiro público
Sentar-se para uma entrevista
Vestir uma roupa que goste
Tomar uma bebida na festa
Dizer não para o marido
Ficar enferma em maca de hospital

Tamar é mais uma e mais uma e mais uma
Que se multiplica na velocidade
De um filme irreversível
Como se fosse uma questão de vestuário
Como se fosse irrefreável resistir a Tamar
Como se houvesse desejo por ela
Quando o que há é a sensação poderosa
De destroçar uma fronteira.


A TERRÍVEL HISTÓRIA DA CONCUBINA DO LEVITA

Você nasce
Pode ser um bom negócio
Te deixar crescer
Você cresce
Seu pai te vende
Você é concubina
E a tudo obedece
Mas sob maus tratos
Você volta
Para a casa do pai
(você não tem ninguém)

Seu senhor te busca
E seu pai se alegra
Com a transação válida
Seu senhor te leva
E no caminho
Na casa em que se hospedam
Invasores querem
O corpo do senhor
Mas ele te oferece:
É carne boa
Eu mesmo a amacio
Todos os dias
(e eles te moem)
Até a morte

Então seu dono
Revoltado
Retalha seu corpo
Em doze partes
E distribui
Às doze tribos
Do verdadeiro deus
Para mostrar a elas
Que é preciso uma guerra
Que ensine
Definitivamente
A respeitar
Uma propriedade.



Óscar Domínguez - oscar.dominguez- the.levels.of.desire-1933
Óscar Domínguez, Os níveis do desejo (1933)


O MÉTODO DA MULHER DE LÓ

Quem olhasse para trás se tornaria
Uma estátua de sal
Foi o dito e
Todos sabiam 

Como qualquer um sabe
Que cortar o pulso

Como qualquer um sabe
Que tomar veneno

Como qualquer um sabe
Que se enforcar na corda

Como qualquer um sabe
Que pular de um penhasco

Mas me tornar uma estátua de sal
(perdoem-me por não aguentar mais, minhas filhas)
Me pareceu mais rápido
Menos doloroso
Do que acompanhar aquele homem
Vendo o que eu via
Todos os dias
Dentro da minha casa. 


O ÓDIO DE HERODIAS

Dizem que odeio João Batista
E suas intromissões na vida alheia
Que odeio João Batista
E suas intromissões na minha vida
Que odeio João Batista
Com seu deus me ditando regras
João Batista doutrinando o povo
Distribuindo a palavra pecado
João Batista pastor, entendendo que
Todos são suas ovelhas

Dizem até que amo João Batista
Que meu marido ama João Batista
Que tentei seduzir João Batista
Que minha filha seduziu meu marido
Que a manipulei para pedir a cabeça
De João Batista

Quem tem boca diz o que quer
Digo que odeio João Batista
Tentando transformar seu deus
Em Estado.



Óscar Domínguez - oscar.dominguez-oscar.dominguez-retrato.de.miss.ruth
Óscar Domínguez, pintor espanhol, Retrato da Senhorita Ruth


A PALAVRA DE MARIA

Quando ele veio
Infinitamente maior do que eu
Eu não disse a ele
Não faça

Quando ele veio
Infinitamente mais forte do que eu
Eu não disse a ele
Não quero

Sabendo que ele não dependia
Da minha permissão para nada
Apenas pensei
Como vai ser isso se
Nunca
Estive com
Homem algum?

Quando ele veio
Infinitamente mais poderoso do que eu
Seria dito que eu disse
Sou sua serva
Faça-se em mim conforme a
Sua
Palavra

Então eu
Fechei os meus olhos
E ele me cobriu como uma sombra.




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Carlos Machado, 2023


Foto: Alexandre Kovacs


• Adriane Garcia
  in A Bandeja de Salomé
  edição bilíngue português-espanhol
  trad. ao espanhol de Manuel Barrós
  Caos&Letras, Nova Lima-MG, 2022
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* Ronaldo Costa Fernandes, "Tíquete para o futuro", in Memória dos Porcos (2012)
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* Imagens: quadros do pintor surrealista Óscar Domínguez (1906-1957),
 nascido nas Ilhas Canárias, Espanha