Amigas e amigos,
A escritora mineira Adriane Garcia tem-se revelado uma das poetas mais ativas na cena literária brasileira. Autora já conhecida aqui no
poesia.net, ela retorna nesta edição, trazida pelo seu novo livro, A Bandeja de Salomé (Caos&Letras, 2022). Curiosamente,
esta é uma coletânea bilíngue. Os versos de Adriane são apresentados, lado a lado com as versões em espanhol, escritas pelo tradutor peruano Manuel Barrós.
Em A Bandeja de Salomé, Adriane retoma a inspiração bíblica (ou parabíblica), já exercitada em seu livro Eva-proto-poeta
(Caos&Letras, 2020), este baseado no mito de Lilith, a primeira mulher do mundo — mulher autônoma que, aliás, não nasceu da costela
de um homem. Agora, com Salomé, a autora vasculha a Bíblia e extrai de lá mais mulheres que formam a população do volume.
Cada poema nos apresenta uma personagem bíblica, do Velho ou do Novo Testamento. São relatos de violência, depreciação,
machismo e horror. Enfim, esta é, até hoje, a história das sociedades patriarcais.
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Para esta edição do boletim, selecionei cinco mulheres entre as retratadas por Adriane. A primeira está no poema “Os Destroços de Tamar”.
Localizemos Tamar. A história dela vem do Gênesis, capítulo 38. Viúva de Er, filho de Judá e neto de Jacó, Tamar foi dada como esposa
ao irmão de Er, Onã, que se recusava a ter filhos com ela. Por isso, segundo a Bíblia, Deus matou Onã. Outra vez viúva, ela esperava que,
conforme a tradição, o sogro lhe desse como marido o filho mais novo. Mas o sogro não fez isso.
Tamar, então, disfarçou-se de prostituta e manteve relações íntimas com Judá, o sogro. Ficou grávida. Quando Judá soube de sua gravidez,
ordenou que ela fosse apedrejada e depois queimada. Contudo, ao saber que era o pai da criança, exclamou: “Ela é mais justa que eu”.
Tamar teve gêmeos, um dos quais, Fares (ou Perez) se tornaria ancestral do famoso rei David. O poema diz: “Tamar é só mais uma daquelas
que precisam dormir / Com um olho aberto e o outro fechado”.
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O texto seguinte é “A Terrível História da Concubina do Levita”. De novo, procuremos o contexto na Bíblia. Esse episódio encontra-se no
livro dos Juízes, capítulo 19. A concubina (ou seja, amante, manceba ou até prostituta) é vendida pelo pai a um senhor de posses, o
levita — quer dizer, membro da tribo de Levi.
A moça segue seu amo. E vem o poema: “E no caminho / Na casa em que se hospedam / Invasores querem / O corpo do senhor / Mas ele te
oferece: / É carne boa / Eu mesmo a amacio / Todos os dias / (E eles te moem) / Até a morte”.
Pensa você, leitora, que a morte é o fim de todos esses horrores? Nada disso: o levita, dono da finada, “Retalha seu corpo / Em doze partes /
E distribui / Às doze tribos / Do verdadeiro deus / Para mostrar a elas / Que é preciso uma guerra / Que ensine / Definitivamente /
A respeitar / Uma propriedade”.
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Observem que a propriedade do levita, como se trata de um bem material, uma coisa, não tem nome. Também não tem nome a mulher do próximo poema,
“O Método da Mulher de Ló”. Tanto ela como as filhas são identificadas pelo nome do patriarca. No texto, Adriane Garcia supõe que a mulher
de Ló, ao fugir de Sodoma, tem um plano. Ela olha para trás, desobedecendo à recomendação dos anjos. “Mas me tornar uma estátua de sal /
(perdoem-me por não aguentar mais, minhas filhas) / Me pareceu mais rápido / Menos doloroso / Do que acompanhar aquele homem /
Vendo o que eu via / Todos os dias / Dentro da minha casa”.
Portanto, temos aí mais uma interpretação para o misterioso “olhar para trás” dessa mulher. Seria quase um suicídio, diante de atos ignóbeis
sofridos e presenciados por ela no ambiente doméstico.
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O poema seguinte é “O Ódio de Herodias”. Mais uma vez, voltemos à Bíblia. Agora, estamos no Novo Testamento. Herodias é a mulher de Herodes
Antipas, rei da Judeia. Segundo os evangelhos de Marcos e Mateus, João Batista, cristão, estava preso e foi executado por intervenção de
Herodias e de sua filha, Salomé. Contam os evangelistas que Salomé dançou para Herodes (que não era seu pai) e este, entusiasmado, lhe
prometeu tudo que ela quisesse. Ela consultou a mãe e pediu-lhe a cabeça de João Batista, que enfim lhe foi entregue numa bandeja. Daí
vem o título do livro de Adriane: A Bandeja de Salomé.
E Herodias? Ela recebeu das mãos da filha a cabeça de João Batista. Mas por que teria feito esse pedido brutal? Mais uma vez, a criatividade
de Adriane Garcia dá uma resposta. Conforme o poema — leiam, por favor —, Herodias odeia a confusão entre deus e Estado, proposta pelo Batista.
Passemos agora para o último poema ao lado, “A palavra de Maria”. Esta é talvez a personagem mais conhecida do livro: Maria, a mãe de Cristo.
Ela fala exatamente de seu misterioso encontro com “ele”, do qual resultaria a gestação daquele que a Bíblia chama de “filho de Deus”: “Quando ele veio /
Infinitamente mais forte do que eu / Eu não disse a ele / Não quero // Sabendo que ele não dependia / Da minha permissão para nada”.
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Maria, Herodias, a mulher de Ló, a concubina do levita e Tamar são apenas cinco mulheres da população reunida em A Bandeja de Salomé.
Mas todas merecem ser lidas, relidas e divulgadas. É a vida das mulheres que, contada a partir de antigas histórias ou lendas, reflete-se
terrivelmente no espelho de hoje.
A miniantologia ao lado é muito restrita, diante do rico universo feminino criado neste livro. Considere-se, por exemplo, que a mesma Tamar,
a que se finge de prostituta, depois — segundo as “escrituras” de Adriane Garcia,
em outro poema não citado aqui —, escreve uma carta ao sogro Judá, revelando que ele é o
pai do filho que ela espera. Um detalhe: durante o contato íntimo com o sogro (isso está no Gênesis), Tamar guardou consigo o anel de chancela,
o cordão e o cajado dele, itens que usaria depois para provar o contato íntimo e, por conseguinte, a paternidade do filho.
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Adriane Garcia (Belo Horizonte, 1973) já esteve aqui no boletim nas edições n. 422
(2019), n. 389 (2017) e
n. 334 (2015). É graduada em História pela UFMG e especializou-se em Arte-Educação na UEMG.
Sua obra poética reúne os títulos A Bandeja de Salomé (2022, Caos&Letras); Eva-Proto-Poeta (2020, Caos&Letras); Garrafas ao Mar (2018, Penalux);
Embrulhado para Viagem (2016 - Coleção Leve um Livro, orgs. Ana Elisa Ribeiro e Bruno Brum); Enlouquecer é Ganhar Mil Pássaros (2015, e-book, Vida Secreta);
O Nome no Mundo (2014, Armazém da Cultura); Só, com Peixes (2015, Confraria do Vento); e Fábulas para Adulto Perder o Sono (2013, Biblioteca do Paraná).
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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LANÇAMENTO
Cicatrizes
• Carlos Machado
Amigas e amigos: em abril, lançarei
em São Paulo novo livro de poesia, Cicatrizes, publicado por uma empresa também novíssima em folha, a Balaio Editorial.
Quando: sábado, 15/04 das 16h às 19h.
Onde: Bar Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471 - Vila Madalena
São Paulo - SP
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