Júlio Machado
Amigas e amigos,
Discreto e de pouco barulho, o poeta Júlio Machado (Pouso Alegre-MG, 1975) — ou, por extenso, Júlio César Machado de Paula — desenvolve uma obra
literária que reflete fielmente seu estilo pessoal. Professor de Literaturas Africanas da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, Machado
é também contista, autor teatral e músico. Em poesia, publicou O Quintal e o Mundo (Kazuá, 2016) e, como dramaturgo, escreveu as peças A Profecia
(1998) e Luzia (2007), encenadas respectivamente pelo Grupo Pândega e pelo
Teatro do Brejo Bento.
Júlio Machado já esteve aqui no poesia.net na edição n. 232.
Agora ele retorna, trazido pelo livro recém-lançado Lagar de Fala (Urutau, 2022). Essa coletânea — impossível não perceber este detalhe — já
apresenta no título uma instigante ironia. Aí está um paralelo com a conhecida expressão “lugar de fala”.
Lagar, bem diferente, é (cf. Houaiss) a “oficina com os aparelhos adequados para espremer certos frutos (uva, azeitona), reduzindo-os a líquido”.
Portanto, o “lagar de fala” de Júlio Machado corresponde a um laboratório poético. Isso será mostrado mais adiante.
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Passemos à leitura dos poemas escolhidos para este boletim. O primeiro deles é “Ave, César”. O texto, aparentemente escrito nos primeiros anos 2000,
já se inicia com uma sutil ironia: “Ave, César, / que o AVC / não te impeça / de ver pela TV / o século / que começa”. Observe-se que “AVC” já
vem embutido na saudação “Ave, César”.
Seguem-se outros bons desejos ao poderoso imperador romano — que, pela sua elevadíssima posição, parece distante de aflições que atingem
os mortais comuns, como o próprio AVC, o infarto e outros sinais dos “humores desarranjados”. De todo modo, fica o aviso
à pessoa física do influente César: à parte os ferozes poderes de Estado, ele também é mortal e sujeito a todos os males que afetam
desde os mais soberbos cortesãos aos mais humildes servos. Ave, César.
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O poema seguinte, “Oração ao deus insone de Ourique”, baseia-se numa lenda da História de Portugal. Em Ourique, cidade localizada no Alentejo (região sul
do país), realizou-se em julho de 1139 uma batalha decisiva para a independência portuguesa. Nela, tropas cristãs, lideradas por Dom Afonso Henriques
(citado no poema), venceram exércitos muçulmanos com extrema dificuldade.
Mas por que o narrador do poema diz, no primeiro verso, que “a fé de ferro e de truz” que teria ajudado os lusos nessa vitória “foi um truque de Afonso
Henriques”? Segundo a lenda, antes do confronto, o comandante português disse que Jesus Cristo em pessoa lhe teria aparecido e lhe garantira bons
resultados na refrega. Cristo, assegurou o general, confiava nas motivações religiosas dos portugueses naquela guerra.
O curioso, neste poema sobre a Batalha de Ourique, é a linguagem imperial, que alinha o mundo inteiro sob o domínio (futuro) dos portugueses:
“de Benguela, de Malaca, / Pernambuco e Moçambique”. E nessa futurologia, dá-se o narrador o direito de citar, entre armas como mosquetes, naus e buques,
até o recentíssimo napalm, desenvolvido em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial.
Ciente de seu dever imperial, o sujeito lírico do poema também faz questão de saudar o “repique dos sinos” e repelir “o sorrir dos batuques”.
O truculento colonizador já antecipa: nada para Benguela, Pernambuco e Moçambique, para lembrar três regiões por ele citadas.
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O poema a seguir, “Mensagem”, também vem de inspiração lusitana. Agora, o ponto de partida é Fernando Pessoa, com seu livro Mensagem e
o famosíssimo verso “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Em seu texto, Júlio Machado cita verticalmente esse mote de Pessoa e, nos interstícios,
embute listas de termos que aparecem à guisa de “tradução” da palavra citada. Sob o pronome “Tudo” surge uma série de lugares e
acidentes geográficos.
Embaixo do verbo “vale” vêm sinônimos de objetos de valor, especialmente moedas. O substantivo “a pena” também recebe seus sinônimos, a
exemplo, de “o pelouro, o açoite, o chumbo, o ferro, o malho”. Para a conjunção “se”, que indica hipótese, alinha-se uma batelada de palavras
associadas à ideia de pensamento (discurso, silogismo, teorema, sermão) e considerações abstratas. E o texto segue assim, até a “alma”.
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Passemos para dois poemas mais curtos. No primeiro, “Barbárie”, ainda está presente o sarcasmo com que o poeta trata informações históricas.
Neste caso, ele vai dos astecas à Inquisição ibérica. Em “Tão Macio ou Mais”, a ironia se desloca do grande poder religioso-estatal para a esfera
das relações pessoais. Mas os desmandos e as truculências se mantêm firmes. Aqui, alguém é espancado aos domingos com um porrete
de pinho e se consola descansando num velho travesseiro de paina.
O próximo poema é “In Media Res”, ou no meio das coisas. Essa expressão latina indica uma técnica de narração que consiste em
apresentar os fatos
de uma história não começando pelo início, mas pelo momento crucial, quando a ação está no auge. Isso permite conquistar com mais força a
atenção do leitor. No poema, o eu lírico encontra-se na situação mais difícil de todas: a hora da morte.
Vem, por fim, o poema “Lagar de fala”, que dá título à coletânea. Vale notar que este é também o título de uma das divisões do livro. Na abertura
desse bloco, o poeta cita o dicionário Caldas Aulete, deixando claro o significado do substantivo “lagar”, a oficina onde se transformam certos
frutos, como a uva, em líquido. Na mesma página, também estão reproduzidos os significados do vocábulo “fala”. Fica, portanto, preparado o campo
para “Lagar de fala”, um metapoema que descreve uma oficina de criação poética.
Os versos iniciais já traçam a dimensão desse ambiente de trabalho. “Em Bengo, Rocha Miranda, / Bié ou Trafalgar Square, / cavalgar o verbo requer /
qualquer coisa que ande à roda / e que roa mais do que a roupa / do rei que já não se quer”. A intenção declarada desse lagar “é cavalgar o verbo”.
Seguem-se várias metáforas, sempre voltadas para a ideia de dominar a palavra e fazer com que “a fala seja, / mais que um saveiro à deriva, /
um belo salto de impala”.
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Entre os textos de Lagar de Fala, Júlio Machado apresenta alguns que claramente dão sinais de sua vinculação à arte dramática.
Dois poemas do livro são montados à base de diálogos. Um é “Sonho de uma noite de Morfeu”, no qual os personagens Morfeu e Proteu travam
intensa conversação.
O outro poema-diálogo, dedicado a Cecília Meireles e a João Cabral de Melo Neto, chama-se “O Moleiro e o Esmoler”. Os dois textos oferecem
uma leitura sofisticada, com os personagens terçando vida, arte e filosofia. Infelizmente, não vou transcrever aqui nenhum dos dois artefatos.
Considerei, inicialmente, citar trechos de pelo menos um deles. No entanto, concluí que, como se trata de poemas extensos e baseados em
falas longas, transcrever trechos significaria um ato de mutilação. Deixo, porém, esta enfática sugestão: se tiverem oportunidade, leiam
esses poemas, especialmente “O Moleiro e o Esmoler”. Vale a pena, pois a alma não é pequena.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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Grãos - Poemas de lembrar a infância
• Ieda E. de Abreu
A escritora
Ieda Estergilda de Abreu lança o volume Grãos - Poemas de lembrar a infância, publicado pela Editora Urutau.
Quando: quinta-feira, 30/03, às 17h.
Onde: Antiquário Bar & Café
Rua Guimarães Passos, 17 -
Vila Mariana
São Paulo - SP
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Cícero Dias, pintor pernambucano, Sem título (1953)
AVE, CÉSAR
Ave, César,
que o AVC
não te impeça
de ver pela TV
o século
que começa;
que o infarto
do miocárdio
não te farte
da miséria
que nos invade;
que a sorte
que te inunda
o córtex
não te destroce
a prole imunda;
que o câncer
não te canse
a pança
em meio à dança
dos tumores;
que os humores
desarranjados
não te dessorem
a alma com uma
falsa calma
fitoterápica.
Vede, Cesar, sem vir nem vencer:
o que se arrasta e arrasa,
sem ódio e sem pressa,
não é o sol, é a sombra
de mais um século
que começa.
ORAÇÃO AO DEUS INSONE DE OURIQUE
A fé de ferro e de truz
que nos valeu em Ourique
foi, entre fogo e entre cruz,
entre trevas e entre luz,
um truque de Afonso Henriques.
E a messe que dela houvermos,
Deus dê que ela frutifique
em cada nau, cada buque,
sem dar a ver o que é pique,
Napalm, mosquete ou muque.
Que o estuque de nossa fé,
esculpida em pau a pique,
fique assente entre inimigos
de Benguela, de Malaca,
Pernambuco e Moçambique.
E que o repique dos sinos
(não o sorrir dos batuques)
sirva de baque aos ouvidos
enquanto a luz dos lingotes,
um a um, nos purifique.
Cícero Dias, Mulher e guarda-chuva
MENSAGEM
Tudo
(o globo, o orbe, a urbe, o ultramar, os sete mares, o mare nostrum, as penínsulas, os istmos,
os cabos, as ilhas, as Índias, a Índia, a Indochina, a China, os Brasis, os Andes, as Antilhas,
as Malvinas, as Maldivas, a Fenícia, as Arábias, a Abissínia, a Guiné, o Congo, o Gâmbia, o
Ganges, as Guianas, o Gólgota, o Xingu, o Amazonas, o Alasca, os pampas, as savanas, as estepes, os
desertos, os desterros, o Magrebe, as Rodésias, os sertões, os emirados, o álefe, o alfa, o
ômega, o ohm, o uhn, o yin, o yang, o outro, o firmamento, as dez mil coisas)
vale
(a letra, a libra, a lira, a dobra, o dobrão, o dólar, a coroa, a cista, o siclo, o cruzeiro, o
cauri, a concha, o kwanza, o brend, o iene, o rand, o rial, a rúpia, o rublo, a dracma, a prata,
a pataca, a mealha, o marco, o metical, o dinar, o dirrã, o franco, o florim, o xelim, o câmbio,
o cobro, os cobres, os contos, o escudo, o peso, o euro, o ouro, os louros, o lingote, o
laudêmio, o óbolo, o sol, o sal, o soldo, o troco, a troca, a espórtula, a esmola, a limosna, o
vintém, o tostão, a tença, o quilate, a oitava, a onça, os réis, os trinta dinheiros)
a pena
(o pelouro, o açoite, o tronco, a tranca, o chumbo, o ferro, o fogo, o afogo, o malho, o relho, o cepo,
a lança, a maça, a morsa, o martelo, o extrator, o garrote, a trincha, a tez, a ECT, o extensor,
a tenaz, a tersa, o terçado, a torquês, a teaser, a prensa, o ácido, a pua, o pau, a farpa, a forca,
a forquilha, a fogueira, a gargalheira, o arame, o lanho, o lenho, a infâmia, a cãimbra, a máscara, a
marca, a brasa, a sífilis, a varíola, a lobotomia, o mal gálico, o alicate, o
pau-de-arara, a donzela-de-ferro, o touro de bronze, o dessenador)
se
(a retórica, a dialética, a premissa, a poética, a prédica, o predicado, o
prefácio, a profecia, a metáfora, a hipótese, a hipotenusa, a glosa, a doxa, o
discurso, o silogismo, o teorema, a conjectura, o código, o cogito, o sunt, a
sinopse, a sinapse, o versículo, a erística, a estética, a estatística, a exegese,
a hagiografia, a hermenêutica, a homilia, a parenética, a prognose, o a priori, o sofisma, o
sufismo, o sermão, o diagnóstico, o ad hoc, o adendo, o caput, a propaganda, o jingle, o
slogan, a paranoia, a gestalt, a gestapo, o quod erat demonstrandum)
a alma
(a anima, a álima, a mancha, a aragem, a fleugma, o pneuma, o nume, o alento, o lampejo, o
elã, o afã, o fantasma, a avantesma, o entusiasmo, a visagem, o arroubo, o arrojo,
o jorro, o sopro, o gozo, o esporro, o blefe, o bufo, a bufa, o alvitre, a alvíssara, o flato, o
aflato, o fluxo, o refluxo, o respiro, o viço, o inquice, a raça, a brasa, a brisa, a chama, a flama, a gana,
a centelha, o vento, o zéfiro, o este, o sueste, o siroco, o esboço, o estro, o debuxo, a tosse, a musa, o
fôlego, o resfôlego, o espírito, o cio, o alívio, o ímpeto, o lítio, o lírico)
não é.
Cícero Dias, Recordações
BARBÁRIE
Gosto (de sangue) não se discute:
o rei asteca sacrificava garotos
em honra dos abacates;
mas a Inquisição ibérica dos velhotes
aplicava garrotes e alicates
aos vates de Calicute.
TÃO MACIO OU MAIS
Se não me engano, era de pinho,
não de eucalipto ou sarrilho
de ipê o porrete roliço
com que me batia aos domingos.
Se não me engano, era de paina,
não de painço ou de palha ou pena
de ganso o travesseiro velho
com que me dei paz e descanso.
Cícero Dias, Casal na varanda
IN MEDIA RES
Parei
atônito
esperando
a morte
que não
viria
se eu não
tivesse
parado.
(E o anjo
que inter-
pelei
perguntando
o que era
afinal
a vida
forneceu-me
o formicida.)
LAGAR DE FALA
Em Bengo, Rocha Miranda,
Bié ou Trafalgar Square,
cavalgar o verbo requer
qualquer coisa que ande à roda
e que roa mais do que a roupa
do rei que já não se quer.
Para cavalgar palavras,
carece alargar a tala
do osso que não se larga,
e na carestia da ilharga,
saber que o engonço do verbo
não vem tão fácil ao verso
como o vento vem ao feno.
Se o verbo fareja a festa,
convém alongar a onda
que liga o barco às marés
e faz com que a fala seja,
mais que um saveiro à deriva,
um belo salto de impala,
uma trívia de tiriva.
Se é festa em que se embriaga,
convém estalar a roda
que prensa uva e palavra
na crença de que se extraia
das bagas do rosto o suco,
o mosto, a soda ou o muco
do muito que em cada músculo
era vinho e nem se via.
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