Número 507 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 26 de abril de 2023

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«Porque os corpos se entendem, mas as almas não.» (Manuel Bandeira) *

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Myriam Fraga
Myriam Fraga



Amigas e amigos,

Nesta edição, o poesia.​net revisita a obra poética da baiana Myriam Fraga (1937-2016), com foco no livro Femina, de 1996, meu título preferido entre os trabalhos da autora. Inicialmente, minha intenção era apenas esta: fazer uma revisitação pessoal. Contudo, durante a preparação deste boletim, descobri duas belíssimas surpresas.

A primeira é a criação do site Myriam Fraga, no qual se apresentam, de forma bem cuidada, a biografia da escritora, fotos, lista de livros e até os discursos por ela proferidos. A segunda grande novidade é a criação do Selo Myriam Fraga, sob o qual foram reeditados, em formato de e-book, dois títulos (Poemas e Poesia Reunida), que englobam a quase totalidade de sua obra poética. Há ainda um terceiro e-book, Mínimas Estórias Gerais, contendo crônicas esparsas publicadas no jornal A Tarde, de Salvador. Melhor do que tudo, esses três livros estão disponíveis para download no site. Encontre-os no menu Livros / Selo Myriam Fraga.

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Mas voltemos a Femina. Conforme o que se anuncia a partir do título, esse livro reúne uma inspirada coleção de poemas escritos a partir de inquietações e pontos de vista femininos. Repito aqui o que já disse em outros boletins. Em todas as suas coletâneas de poemas, Myriam Fraga atinge um nível muito elevado de elaboração poética. Mas — para mim — é em Femina que ela atinge os momentos mais vibrantes. É como se ali a poeta tivesse reunido todos os seus poderes mágicos. De fato, nesse livro o sujeito poético, sempre no feminino, assume os vestidos e as histórias de uma extensa coleção de personagens.

Nesta edição, ao revisitar o livro, fiz questão de selecionar poemas não incluídos em boletins anteriores. A miniantologia ao lado inclui seis poemas. Os dois primeiros fazem parte de uma seção chamada “Calendário”, nomeada com os doze meses do ano. Em “Janeiro”, mês de verão baiano, a cidade (possivelmente Salvador) é comparada a um lagarto “emergindo das águas”. Mas a cidade é também “um pássaro / renascendo das brasas”.

No segundo poema, “Outubro” é descrito como um “caroço de tempestades / nó de cobras ardentes”. Um mês “subversivo ao calendário”, no qual “é sempre outono”. Um período em que se destacam “pendões/ na ponta/ das estacas/ desse campo minado/ a que chamamos destino”. Na descrição de Myriam Fraga, outubro é talvez o mais terrível dos meses.

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O próximo poema, “Ressaca” vem da divisão do livro chamada “Idílios”. Num breve terceto, aí está uma definição das paixões arrebatadoras. Em “Fonte”, as cordas do lirismo são tangidas em deliciosas harmonias. O final é envolvente: “Música de sombras verdes/ Teu murmúrio em cascata // E o tempo, o tempo,/ O tempo.../ Gotejando sua mágoa”.

No texto “Cinzas”, acende-se a “brasa dormida” da lembrança de antigos carnavais. As metáforas vêm afiadas e o eu poético — feminino, já sabemos — sente-se como “porta-estandarte/ de um cordão de espectros”. O texto é curto, mas a poesia vai bem fundo.

Vem, por último, o trecho final do longo poema “Maria Bonita”. Em tom lírico e sensual, a companheira de Lampião convida o parceiro para uma noite de amor. “Teu campo de batalha/ Sou eu./ (...)/ E enquanto a noite é calma,/ Vem e apaga,/ Na pele de meu peito,/ Esta fome sem data”.

Por causa de versos assim é que você, cara leitora, você, prezado leitor, devia, desde já, ir ao site Myriam Fraga e baixar os livros dessa poeta inspirada e inspiradora. As obras estão aqui.

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Baiana de Salvador, Myriam Fraga (1937-2016) destacou-se como poeta, biógrafa e administradora cultural. Diretora executiva da Fundação Casa de Jorge Amado desde sua criação em 1986, ela tomou parte em diferentes organismos, como o Conselho Federal de Cultura e o Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Era também membro ativo da Academia de Letras de seu estado.

Estreante em 1964 com os poemas de Marinhas, publicou a maior parte de sua produção poética no volume Poesia Reunida (Assembleia Legislativa da Bahia, 2008), que engloba nove títulos. A autora lançou ainda Rainha Vashti (Roda Edições, 2015) e o volume póstumo Poemas (7Letras, 2017). Os títulos Poesia Reunida e Poemas foram reeditados como e-books sob o Selo Myriam Fraga, em 2021.

Também merece destaque sua obra de divulgação histórica e cultural. Ela escreveu Leonídia, a Musa Infeliz do Poeta Castro Alves (2002) e uma coleção completa de livros infantojuvenis com biografias de escritores e artistas como Luiz Gama, Castro Alves, Jorge Amado, Carybé e Graciliano Ramos.

Myriam Fraga já esteve aqui no poesia.​net nas edições n. 393, n. 347, n. 273 e n. 13.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Pássaro em brasa


• Myriam Fraga


              



Akzhana Abdaliyeva - Primavera
Akzhana Abdaliyeva, pintora cazaque, Primavera


JANEIRO

Verão.

E esta cidade como um sáurio,
Como um réptil,
Emergindo das águas

Verão...

E esta cidade
Como um pássaro
Renascendo das brasas.

Verão...

E esta cidade como um signo,
Astrolábio ou mandala,

Esta cidade
Como um dado
Atirado ao acaso

De males nunca dantes
Confessados.


OUTUBRO

Caroço de tempestades,
Nó de cobras ardentes,
Este é um mês de chuvas cálidas
E de ventos.

Subversivo ao calendário,
Fruto amargo
Na colheita ancestral.

É sempre outono
Em outubro,
É sempre vento.

Nenhuma cintilação,
Somente o escuro.

E no escuro, esta sombra
Graciosa e febril,
Dançando à luz dos raios

— o canto áspero —
E o pescoço
Carregado de contas.

É sempre guerra
Em outubro,
Sempre vermelho e azul.

Sempre pendões na ponta
Das estacas
Desse campo minado
A que chamamos destino.




Akzhana Abdaliyeva - Blue flowers
Akzhana Abdaliyeva, Flores azuis (2020)


RESSACA

A paixão é como vinho
Passada a embriaguez
Resta um co(r)po vazio


FONTE

A vida que passou
— Água tombada
Dos bordos
De tua taça.

O eterno fluir,
O doce encanto
Com que se miram
Ninfas
Pela tarde.

Ó suave marulho,
Ó farfalhar de asas...
— Pássaros nascendo,
Invisíveis, das águas.

Tua concha como
Um cálice
Borbulhante, intocado,

Música de sombras verdes
Teu murmúrio em cascata.

E o tempo, o tempo,
O tempo...
Gotejando sua mágoa.




Akzhana Abdaliyeva - The glass of Martini
Akzhana Abdaliyeva, A taça de Martini


CINZAS

E sempre e sempre
A cinza
Em minha boca

E esta cruz na testa,
Acesa, eternamente,
Como brasa dormida
Que se assopra
E cresce.

Tudo passou...

Porta-estandarte
De um cordão de espectros
Assustadoramente
Escuto, como um eco,
A voz de antigos carnavais
Vibrando.

            Salvador, março, 1992



MARIA BONITA



(trecho final)

Vem, meu dono, meu sócio,
Meu comparsa.
Desarma o teu cansaço,
Desata a cartucheira,
A noite é farta
Como besta no cio,

A noite é vasta.
Vem devagar
E habita meu silêncio
Como se habita
Um claustro.

Teus beijos como
Lâminas. Como espadas.
Pasto de aves meu corpo
Que trabalhas
Como quem corta e lavra.

Desata a cartucheira,
Teu campo de batalha
Sou eu.
Por um momento
Esquece o que te mata
— Fúria e falta —
E enquanto a noite é calma,
Vem e apaga,
Na pele de meu peito,
Esta fome sem data.




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Carlos Machado, 2023



• Myriam Fraga
   in Femina
   Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, Salvador, 1996
   Site: Myriam Fraga
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* Manuel Bandeira, “Arte de Amar”, in Belo Belo (1948)
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* Imagens: quadros da pintora cazaque Akzhana Abdaliyeva (1975-)