Amigas e amigos,
O poeta mato-grossense Paulo Ferraz (Rondonópolis, 1974) é conhecido dos leitores do poesia.net. Ele já esteve aqui nas edições
n. 227 (de 2007)
e n. 41 (de 2003, no primeiro ano do boletim).
Cada uma dessas edições reflete, se não exatamente a data de lançamento, a presença de um ou mais livros do poeta nesse período. Consideradas as datas,
pode-se pensar que o autor escreve pouco ou quase tende a ser um poeta bissexto. Não é verdade, e eu mesmo sou testemunha disso.
Ao longo dos últimos anos, em reuniões informais com amigos ou eventos dedicados à poesia, vi várias vezes Paulo Ferraz mostrar novos poemas, alguns ainda em pleno
processo de criação. Então vem a pergunta: por que, aparentemente, ele publica pouco? Acontece que Ferraz é, em primeiro lugar, um poeta de projeto. Meticuloso, ele
define rumos e os persegue tenazmente. Nesse aspecto, não se pode dizer que seja um poeta da precipitação ou do improviso.
Lançado no segundo semestre de 2018, Vícios de Imanência (Dobradura/Selo Sebastião Grifo), seu livro mais recente, constitui uma prova disso. Trata-se de uma
coletânea que contém várias linhas de força, essencialmente voltadas para o cotidiano.
A esse propósito, o poeta Tarso de Melo observa, na orelha do livro: “Aliás, a poesia de Paulo Ferraz nunca foi uma poesia de dentro de casa. Pelo contrário, os
espaços de sua poesia sempre foram fraturados: o cotidiano rasgado pela História, a casa rasgada pela rua, a vida rasgada pela morte”.
Coerente com esse “cotidiano rasgado pela História”, um dos eixos de Vícios de Imanência situa-se na série “Para Não Esquecer”, que abriga doze poemas
numerados. São ecos da ditadura militar de 1964-1985, esse período tenebroso do qual até agora sofremos os danosos resquícios.
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O primeiro poema de nossa miniantologia vem exatamente da série “Para Não Esquecer”,
o texto n. 3. Observe-se que, ao contrário da prática comum, o
poema traz uma antidedicatória: “Contra Erasmo Dias”. Se aí entre os leitores
houver quem não saiba, ou não lembre, esse Erasmo Dias (1924-2010), coronel, foi
secretário de Segurança de SP. Entre seus feitos truculentos, comandou a invasão
da PUC-SP em 1977, quando cerca de 3.000 policiais espancaram, queimaram com
bombas de gás e prenderam cerca de 900 pessoas. Para saber mais, procure
“invasão da PUC 1977” no YouTube e/ou no Google.
Em “Para Não Esquecer Nº 3”, um personagem, ex-torturador, já velho, conta aos netos, entre carícias, o que fazia com os opositores da ditadura que lhe caíam nas mãos:
“o vovô só lhes / dava um cascudo, um tantinho / de educação”. Que a deusa da democracia nos proteja desse tipo de “educador”.
O poema seguinte, “Resistência dos Materiais”, mostra que todo o conhecimento sobre a robustez dos ossos humanos é inútil diante da brutalidade das botas de
um policial. Aqui a violência não tem, diretamente um viés político, mas social: é contra os pobres, como lembra o verso “no beco, no mato”.
Outro prócer da ditadura militar, o coronel Jarbas Passarinho (1920-2016), é anti-homenageado no pequeno epigrama “Às Favas”. Como se sabe, em 1968, na reunião para decidir
sobre o AI-5, que implantou o arbítrio total no país, Passarinho, então ministro da Educação, disse: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos
os escrúpulos de consciência”. Em outras palavras, o que vamos fazer é criminoso, mas deixemos de lado essa bobagem de consciência.
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Agora, com o poema “Proposta”, o diapasão poético de Paulo Ferraz se ajusta a um tom lírico-amoroso. Contudo, artista que foge do lugar-comum como o diabo da cruz, Ferraz
não escorrega em terreno melífluo. De alguma lição de anatomia ele toma por empréstimo as quatro cavidades do coração (dois átrios, dois ventrículos) e as compara a uma casa.
E assim compõe uma originalíssima declaração de amor.
O texto seguinte é “Poética”, um metapoema. Aqui a elaboração de um poema é comparada à construção de um edifício, vista pelo lado estrutural — portanto, uma obra de engenharia.
Mas, curiosamente, a conclusão diz que, a rigor, não há similaridade entre um poema e um prédio de apartamentos.
O autor certamente pensa no quanto se escreve, reescreve e desescreve num poema. E também no quanto se quer dizer e, por mil e uma injunções, afinal não diz. É por isso que,
para ele, o poema é “uma ruína arqueológica”. O que chega ao leitor são apenas os restos do que um dia, no papel, num arquivo digital ou na mente do poeta, foi (ou tentou ser)
um vigoroso monumento.
O último texto de nossa miniantologia é “Poema-bomba”, também dedicado à reflexão sobre o ato de escrever. Neste caso, destaca-se o contraste entre a imaginação do autor
sobre o destino de seu poema e sua verdadeira realidade.
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Paulo Ferraz (Rondonópolis-MT, 1974) é poeta, tradutor e editor. É graduado em Direito e em História pela Universidade de São Paulo, onte também concluiu o mestrado
em Teoria Literária.
Estreou em poesia com o livro Constatação do Óbvio (Selo Sebastião Grifo, 1999). Em 2007, lançou dois títulos, também pelo selo Sebastião Grifo: Evidências Pedestres
e De novo nada. Este último, que contém um poema único de quase 600 versos, foi adaptado para o teatro por Helder Mariani e levado ao palco no projeto Poetas em Cena.
Em 2011, com o título De Nuevo Nada, esse livro foi publicado no México por Mantis Editorial e em 2014 no Equador por El Quirófano Ediciones.
A coletânea Vícios de Imanência (Dobradura/Selo Sebastião Grifo, 2018), em foco neste boletim, foi uma das obras semifininalistas do Prêmio Oceanos de 2019.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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