Número 518 - Ano 21
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Salvador, quarta-feira, 18 de outubro de 2023
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«E a poesia mais rica / é um sinal de menos.» ( Drummond) *
••• | ••• «A poesia
verdadeira é a mais fingida.» ( Shakespeare) *
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Czeslaw Milosz
Amigas e amigos,
Prêmio Nobel de Literatura de 1980, o poeta polonês Czeslaw Milosz (1911-2004) acaba de ganhar, no Brasil, um volume
dedicado a sua poesia: Para Isso Fui Chamado: Poemas, antologia publicada este ano pela Companhia das Letras, com seleção,
tradução e apresentação de Marcelo Paiva de Souza.
Conforme mostrei na primeira edição do poesia.net dedicada à poesia de Milosz
(n. 112, abril 2005), a história pessoal desse
homem foi profundamente marcada pelas reviravoltas políticas do século XX. Czeslaw Milosz nasceu onde hoje é a Lituânia e lá viveu
até a juventude.
Passou a infância em meio às batalhas da Primeira Guerra Mundial, na frente russa. O pai era engenheiro e construía estradas para o czar.
Depois da guerra, sua cidade natal passou a fazer parte da Polônia (o polonês era, originalmente, a língua de sua família).
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Durante a Segunda Guerra Mundial, Milosz estava em Varsóvia, combatendo os nazistas. Com a formação da república socialista polonesa,
ele se tornou adido cultural em Washington. Desiludido com o stalinismo, pediu asilo político na França em 1953. Aí, nesse mesmo ano,
publicou o livro A Mente Cativa, que criticava o Partido Comunista Polonês. A obra, naturalmente, foi censurada na Polônia,
onde circulava de forma clandestina.
Em 1960, Milosz assumiu a posição de professor de literatura na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e naturalizou-se estadunidense
dez anos depois. Poliglota — dominava russo, polonês, inglês, latim, grego e hebreu —, traduziu poetas como Shakespeare, Milton,
Baudelaire e T.S. Eliot para seu idioma natal.
Em 1980 o poeta recebeu o Prêmio Nobel de literatura, o que elevou bastante sua popularidade. Atualmente, uma pesquisa no Google
com a chave “Czeslaw Milosz” traz 732 mil resultados. Boa parte dos sites que fazem esse número são em polonês. Em 1989, Milosz voltou para
a Polônia, onde morreu em 2004, aos 93 anos.
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Mas vamos aos textos selecionados para esta edição. O primeiro, “O que eu escrevia”, é um metapoema escrito em Paris no ano de 1934.
Nele o poeta reflete sobre a incapacidade de exprimir com palavras as belezas do mundo. “Palavra nenhuma basta para a beleza”, sentencia.
O próximo poema, “Fuga”, escrito em Goszyce (Polônia) em 1944, é um pequeno relato de guerra, com incêndios e a inevitável presença
de mortos. O texto seguinte, “Tua Voz”, de 1968, também fala de morte. Mas agora é a sombra da indesejada, trazida pela idade madura.
“Implora aos deuses que morrer seja fácil”, diz um verso. E a lembrança de duas guerras permanece viva: “Só não sei o que podes fazer,
sozinho, quanto à morte dos outros,/ crianças nas chamas, mulheres sob disparos, soldados privados da visão (...)”.
O poema seguinte, “Permanência”, parte também de imagens retidas na memória. “Foi em uma cidade grande, não importa o país, a língua”,
diz o início. A figura central, entre “gravatas, uniformes de oficiais, os decotes das mulheres”, é a de uma cantora. “Nenhum vestígio
dela e daquele café./ Só uma sombra comigo, fragilidade, beleza, sempre”.
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Vem agora, o último poema da amostra, “Inverno”, produzido na Califórnia após o poeta saber a notícia da morte (em 1983) do poeta
Aleksander Rymkiewicz, seu amigo de juventude, na Polônia. O desaparecimento do amigo, aos 70 anos, o faz pensar no próprio fim.
“Eis-me então aqui, enquanto se abeiram do fim/ O século e minha vida”.
E o poema cresce em emoção com o apelo a elementos da natureza: “Ó lua. Ó Aleksander. Ó fogo de lenha de cedro./ As águas se
fecham sobre nós, o nome dura um instante./ Não importa se restamos na memória das gerações,/ Foi grande a caçada com nossos
cães em busca do inatingível sentido do mundo”.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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Sarah Sedwick, pintora
estadunidense, Ali com uma rosa
O QUE EU ESCREVIA
O que eu escrevia de súbito pareceu
ridículo. Eu não era capaz de exprimir.
Olhei para o mundo imenso, pulsante,
os cotovelos apoiados em um corrimão de pedra.
Rios corriam, velas rasgavam nuvens,
poentes desmaiavam. Todos os belos países,
todos os seres que desejei
se ergueram no céu como grandes luas.
Olhar fixo nesses estranhos lumes moventes,
contando seus arcos astrológicos,
sussurrei: mundo, cessa, piedade, eu me afogo.
Palavra nenhuma basta para a beleza.
Eu enxergava dentro de mim extensos vales
e podia, o passo alado e brônzeo,
lançar-me acima deles em muletas de ar.
Mas isso se foi, noite sem memória.
Paris, 1934
FUGA
Quando fugimos da cidade incendiada,
Na campina, voltando atrás a vista incerta,
Eu disse: “Que a relva cubra nossas pegadas,
Que emudeça no fogo o brado dos profetas.
Os mortos contem aos mortos quanto se via,
Nova estirpe nascerá de nossa semente,
Feroz, livre do mal e do bem de outros dias.
Vamos”. E a terra abriu sob uma espada ardente.
Goszyce, 1944
Sarah Sedwick, Flores de abril
TUA VOZ
Amaldiçoa a morte. É determinada a nós injustamente.
Implora aos deuses que morrer seja fácil.
Quem és, esse punhado de ambições, avidez e sonhos,
não merece o castigo de uma agonia lenta.
Só não sei o que podes fazer, sozinho, quanto à morte dos outros,
crianças nas chamas, mulheres sob disparos, soldados privados da visão,
essas mortes durando muitos dias, agora, aqui, a teu lado.
Tua piedade não tem casa, tua palavra é muda
e temes a sentença, porque nada pudeste.
Berkeley, 1968
PERMANÊNCIA
Foi em uma cidade grande, não importa o país, a língua.
Há muito (abençoado seja o dom
De desfiar uma estória a partir de um detalhe
Na rua, no carro — tomo nota para não perder).
Talvez não um detalhe, aliás, um café lotado
Em que se apresentava toda noite uma famosa cantora.
Eu estava sentado com outros entre a fumaça, o tilintar dos copos.
Gravatas, uniformes de oficiais, os decotes das mulheres,
A música selvagem do folclore dali, das montanhas, decerto.
E aquele canto, aquela garganta, um caule pulsante,
Não esquecido por tão longos anos,
Os volteios da dança, o preto dos cabelos, a brancura da pele,
A imaginada fragrância do perfume.
O que aprendi, o que pude conhecer?
Países, hábitos, vidas se foram.
Nenhum vestígio dela e daquele café
Só uma sombra comigo, fragilidade, beleza, sempre.
Sarah Sedwick, Quente e azedo
INVERNO
Os acres aromas do inverno da Califórnia,
o cinza e o rosa, a lua cheia quase transparente,
Ponho lenha na lareira, bebo e penso.
Acabo de ler a notícia.
“Morreu em Ilawa, aos setenta anos, o poeta Aleksander Rymkiewicz”.
Era o mais jovem do nosso grupo, eu desdenhava um pouco dele,
Como desdenhei de muitos outros de mente medíocre,
Embora não me igualasse a eles em diversas virtudes.
Eis-me então aqui, enquanto se abeiram do fim
O século e minha vida. Orgulhoso da minha força
E envergonhado com a clareza da visão.
Vanguardas de mistura com sangue.
Cinzas de artes inverossímeis.
Museologia do caos.
Submeti tudo isso a julgamento. Eu mesmo, porém, marcado.
Este século não foi propício para os de alma boa e justa.
Eu sei o que é dar monstros à luz e reconhecer a si mesmo neles.
Ó lua. Ó Aleksander. Ó fogo de lenha de cedro.
As águas se fecham sobre nós, o nome dura um instante.
Não importa se restamos na memória das gerações,
Foi grande a caçada com nossos cães em busca do inatingível
[ sentido do mundo.
E agora estou pronto para continuar a corrida
Ao raiar do sol para lá das fronteiras da morte.
Já enxergo a cadeia de montanhas na floresta celeste,
Onde atrás de cada essência se desvenda uma essência nova.
Música dos meus anos tardios, chamam por mim
Som e cores cada vez mais perfeitos.
Não apagues, fogo. Adentra meu sonho, amor.
Que sejam eternamente jovens as estações da terra.
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Carlos Machado, 2023
Foto: CC BY-SA 4.0 Artur Paulowski
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Czeslaw Milosz
in Para Isso Fui Chamado: Poemas
Seleção, tradução e apresentação de Marcelo Paiva de Souza
Companhia das Letras, São Paulo, 2023
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Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Poema-orelha”, in A Vida Passada a Limpo (1958)
* William Shakespeare (1554-1616), in Como Gostais, Ato III, Cena III
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* Imagens: quadros da pintora estadunidense Sarah Sedwick (1979-)
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