Número 517 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 4 de outubro de 2023

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«Só a tristeza tem história.» (Amélia Pais) *

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Lívia Natália
Lívia Natália


Amigas e amigos,

A poeta baiana Lívia Natália já esteve aqui no poesia.​net na edição n. 332, em 2015, ano de sua estreia na poesia. De lá para cá, ela já lançou vários livros e ganhou prêmios. Sua publicação mais recente é a coletânea Em face dos últimos acontecimentos, lançada em 2022 pela editora Caramurê, de Salvador.

Nesse livro, conforme anuncia o título, Lívia Natália assume como tema central de seus poemas o noticiário atual, trágico, envolvendo os pobres e, em especial, a população negra. O poema que dá título à obra (e que foi também seu ponto de partida — veja-o ao lado) lista uma série dessas notícias. Amparada em Drummond, a poeta pergunta: “Os ombros do poeta sustentam o mundo,/ mas quanto do mundo sobrará para amparar/ os ombros fartos da poeta?”.

Em seguida, após citar eventos monstruosos como as mortes do sindicalista Chico Mendes (Acre, 1988), do indígena pataxó Galdino (Brasília, 1997), os 111 mortos do Carandiru (São Paulo, 1992) e a chacina do Cabula (12 mortos, Salvador, 2015), a poeta retorna ao mestre Drummond: “Disseram que chega um tempo em que não se diz mais: ‘meu Deus!’/ Chegou o tempo em que podemos perguntar: há Deus?”.

Não é por acaso que, no texto introdutório de sua coletânea, Lívia Natália lamenta: “antes de tudo, preciso dizer que este é um livro duro e que sinto muito por trazê-lo a vocês”. Ou seja, a própria autora sente o peso do que oferece ao leitor sensível e consciente.

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De fato, é um livro duro, retrato de uma realidade dificílima, cruel. A autora inclui na coletânea outros poemas do mesmo teor, a exemplo de “Contando crianças mortas” e “111 tiros, 111 presos, 111 negros”, referências às balas perdidas que ceifam as vidas de crianças nas periferias e ao tenebroso massacre do Carandiru, em São Paulo, 1992. Esses dois poemas não estão transcritos aqui.

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O próximo texto de nossa pequena amostra ao lado é “Elegia”, que observa a realidade por outro ângulo. Nele, Lívia Natália tece considerações sobre “a morte do outro”. E vem uma confissão íntima: “Dói.// E eu nunca sei o que fazer/ com isso,/ que é o desamparo”. Mais uma vez, vem à lembrança a pergunta da própria autora: “quanto do mundo sobrará para amparar/ os ombros fartos da poeta?”

O mesmo tema se apresenta, mais uma vez, no poema “Quadrilha”, que também traz de volta a sombra do poeta Carlos Drummond de Andrade. Só que a história não cabe no texto homônimo do poeta mineiro. Aqui, “João morreu,/ assassinado pela PM” e “Maria guardou todos os seus sapatos”.

Este poema de Lívia Natália foi escolhido, em Ilhéus-BA, para figurar em outdoors da cidade. Mas, quando o texto se tornou público, autoridades incomodadas proibiram sua exibição. Na época (janeiro de 2016), em protesto contra a censura, reproduzi o poema, tal como figurou nas ruas de Ilhéus, no canal poesia.net do Facebook.

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Segue-se o texto “Corpoema”. Nele, sempre no contexto da resistência, o sujeito poético declara sua disposição de luta. “Sou forte como as pedras/ quando cedem às Águas”. Ou, ainda, “Sou aquela flor que verga/ para guardar no pólen/ o seu futuro perfume”.

Vem, por fim, o “Oráculo de Oxum”. Aqui, na melhor tradição dos orikis (as louvações ou evocações aos orixás), Lívia Natália tece um canto lírico a Oxum, a rainha da água doce, dona dos rios e cachoeiras, cultivada no candomblé e na umbanda, religiões de origem africana. “Dizem que não se mede a profundidade de um Rio/ com os dois pés.// Não mesmo.// O Rio foi feito para se beber/ — com o corpo”.

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Há quase 100 anos, no final de 1925, o poeta modernista Manuel Bandeira escreveu o célebre “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Agora, Lívia Natália, com seus textos debruçados sobre o terror cotidiano, palmilha caminho similar ao traçado por Bandeira. Mas, infelizmente, a poeta baiana o faz não diante de um caso único, isolado, o da morte de um cidadão conhecido como João Gostoso, que se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.

Há duas diferenças nada sutis. A primeira: o caso de João Gostoso podia muito bem ser tomado como uma tragédia existencial. Doente ou desGostoso, o homem teria decidido morrer afogado. O talento de Bandeira deu a essa tragédia pessoal uma dimensão comovente e inapelavelmente lírica.

A segunda diferença: cem anos depois, o desassossego e o extermínio diário de brasileiros não envolve questões existenciais: são gravíssimos problemas de segurança pública que desabam, como chumbo quente, especialmente sobre a juventude negra e periférica das cidades.

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Doutora em literatura e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Lívia Natália (Salvador-BA, 1979) estreou em livro com a coletânea Água Negra (Caramurê, 2011), obra destacada no Concurso Literário do Banco Capital. Publicou em seguida os seguintes livros: Correntezas e Outros Estudos Marinhos (Oguns Toques Negros, 2015); Água Negra e Outras Águas (Caramurê, 2016); Dia Bonito Pra Chover (Prêmio APCA de Melhor Livro de Poesia de 2017/Editora Malê); Sobejos do Mar (Caramurê, 2017); e Em Face dos Últimos Acontecimentos (Caramurê, 2022). A autora também já se voltou para o público infantil, com o livro em prosa As Férias Fantásticas de Lili (Ciclo Contínuo, 2018).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Poemas do desamparo

• Lívia Natália


              



Domínguez - Désir d'été
Óscar Domínguez, pintor espanhol, Desejo de verão (1934)


EM FACE DOS ÚLTIMOS ACONTECIMENTOS

   29 de julho de 2019


Eu sei que não podemos nos calar,
mas há um tom a mais
que nos abafa o respiro.
Me encomendaram poemas sobre o que se passa,
e caminho pelas ruas açodadas
a me perguntar quando tudo isso
passa?

Os ombros do poeta sustentam o mundo,
mas quanto do mundo sobrará para amparar
os ombros fartos da poeta?

Não há palavras que se possa limpar e usar
para dizer do descompasso do tempo:
um tiro cravou-se fundo no peito —
no tempo em que um disparo bastava —
e lá estávamos, Chico Mendes, jazidos,
Índio Galdino, incendiados.
Candelária, entre a noite densa e a bainha da 
                      [ madrugada, destecidos.
Esstávamos Ônibus 174, no camburão justiceiro, 
                      [ asfixiados.

Hoje, uma bala no peito mal nos abre uma humilde vala.
Nosso algoz nos alveja 111, 80,
Nos atinge Vila Moisés, Cabula, Carandiru
e caímos.

Marcha sobre nós com seus pés de comer cintilâncias. 
e não sobra uma estrela que diga
ainda haver poesia
nestes impossíveis dias.

(Disseram que chega um tempo em que não se diz 
			[ mais: “meu Deus!”
Chegou o tempo em que podemos perguntar: 
			[ há Deus?)

Nosso algoz nos tocaia em Marielles mil,
e miliciam a esperança que trazíamos no peito,
ele nos executa numa esquina
entre o medo
e a flama que carregávamos viva de desejo.

Há, no entanto, a força do sim.
E, como sempre,
sobrevivem, estilhaçadas,
sementes que nos prometem alguma primavera.



Domínguez - Deux femmes - 1951
Óscar Domínguez, Duas mulheres (1951)


ELEGIA

   A um Jovem morto pela Fúria do Estado


A morte sempre me dói num descampado,
descobre, em minha pele fina,
searas abertas para as lágrimas.
Lasca fundo o gorgomilo
e fere os miúdos de mim
com unhas grandes.

A morte do outro,
um meu desconhecido,
um ignorado de mim,
rói o grosso do meu afeto:
mistura entranhas
e desabriga o sangue das feridas secas.

Dói.

E eu nunca sei o que fazer
com isso,
que é o desamparo.


QUADRILHA

Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos.



Domínguez - La couturiere - 1943
Óscar Domínguez, A costureira (1943)


CORPOEMA

Sou forte como as pedras
quando cedem às Águas.
Moldo-me no vento das substâncias,
nos silêncios que se desenham nas ondas.

Sou forte como as asas dos pássaros,
como as pernas delicadas de um flamingo:
sou aquela cor que lhe grita no corpo
algo desfeito de sutilezas.

Sou forte. Sou brava.
Mas me dobro em entranhas miúdas
e meu sangue é cheio de esperas,
como as minhas lágrimas.

Sou forte como aquela flor
que verga sob o vento grave.

Sou aquela flor que verga
para guardar no pólen
o seu futuro perfume.


ORÁCULO DE OXUM

O Rio foi feito para se beber.
De que servem os pés
a tatear Seu fundo macio?
Tolo ante o Mistério,
a interpretar com dedos cegos
o intangível lamoso de suas palavras?

A carne do Rio é feita de esperas.
Seu profundo é ancestral.
E memória assentada na inquietude escura.
As mãos do Rio madrugam silêncios
e lambem as pernas bonitas das lavadeiras,
lavando-se no sal de sua negrura.

O Rio, se aquietado nas Lagoas,
acha caminho de Mar
mordendo o útero da terra.
Vertido em Mar,
talha as embarcações
na salmoura das correntes,
cria fantasmas na beira,
tendo comido seus nomes.

Dizem que não se mede a profundidade de um Rio
com os dois pés.

Não mesmo.

O rio foi feito para se beber
      — com o corpo.




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Carlos Machado, 2023



• Lívia Natália
   in Em face dos últimos acontecimentos
   Ilustrações de Fernando Oberlaender
   Caramurê, Salvador, 2022
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* Amélia Pais, "Só a tristeza tem história"
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* Imagens: obras de Óscar Domínguez (1906-1957), pintor surrealista espanhol.