Amigas e amigos,
A poeta baiana Lívia Natália já esteve aqui no poesia.net na
edição n. 332,
em 2015, ano de sua estreia na poesia. De lá para cá, ela já lançou vários livros e ganhou prêmios. Sua publicação mais recente
é a coletânea Em face dos últimos acontecimentos, lançada em 2022 pela editora Caramurê, de Salvador.
Nesse livro, conforme anuncia o título, Lívia Natália assume como tema central de seus poemas o noticiário atual, trágico,
envolvendo os pobres e, em especial, a população negra. O poema que dá título à obra (e que foi também seu ponto de partida
— veja-o ao lado) lista uma série dessas notícias. Amparada em Drummond, a poeta pergunta: “Os ombros do poeta
sustentam o mundo,/ mas quanto do mundo sobrará para amparar/ os ombros fartos da poeta?”.
Em seguida, após citar eventos monstruosos como as mortes do sindicalista Chico Mendes (Acre, 1988), do indígena pataxó
Galdino (Brasília, 1997), os 111 mortos do Carandiru (São Paulo, 1992) e a chacina do Cabula (12 mortos, Salvador, 2015),
a poeta retorna ao mestre Drummond: “Disseram que chega um tempo em que não se diz mais: ‘meu Deus!’/
Chegou o tempo em que podemos perguntar: há Deus?”.
Não é por acaso que, no texto introdutório de sua coletânea, Lívia Natália
lamenta: “antes de tudo, preciso dizer que este é um
livro duro e que sinto muito por trazê-lo a vocês”. Ou seja, a própria autora sente o peso do que oferece ao leitor sensível e consciente.
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De fato, é um livro duro, retrato de uma realidade dificílima, cruel. A autora inclui na coletânea outros poemas do mesmo teor, a
exemplo de “Contando crianças mortas” e “111 tiros, 111 presos, 111 negros”, referências às balas perdidas que ceifam as vidas de
crianças nas periferias e ao tenebroso massacre do Carandiru, em São Paulo, 1992. Esses dois poemas não estão transcritos aqui.
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O próximo texto de nossa pequena amostra ao lado é “Elegia”, que observa a realidade por outro ângulo. Nele, Lívia Natália tece considerações sobre
“a morte do outro”. E vem uma confissão íntima: “Dói.// E eu nunca sei o que fazer/ com isso,/ que é o desamparo”. Mais uma vez, vem à
lembrança a pergunta da própria autora: “quanto do mundo sobrará para amparar/ os ombros fartos da poeta?”
O mesmo tema se apresenta, mais uma vez, no poema “Quadrilha”, que também traz de volta a sombra do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Só que a história não cabe no texto homônimo do poeta mineiro. Aqui, “João morreu,/ assassinado pela PM” e “Maria guardou todos
os seus sapatos”.
Este poema de Lívia Natália foi escolhido, em Ilhéus-BA, para figurar em outdoors da cidade. Mas, quando o texto
se tornou público, autoridades incomodadas proibiram sua exibição. Na época (janeiro de 2016), em protesto contra a censura,
reproduzi o poema, tal como figurou nas ruas de Ilhéus, no canal poesia.net do
Facebook.
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Segue-se o texto “Corpoema”. Nele, sempre no contexto da resistência, o sujeito poético declara sua disposição de luta. “Sou forte
como as pedras/ quando cedem às Águas”. Ou, ainda, “Sou aquela flor que verga/ para guardar no pólen/ o seu futuro perfume”.
Vem, por fim, o “Oráculo de Oxum”. Aqui, na melhor tradição dos orikis (as louvações ou evocações aos orixás), Lívia Natália
tece um canto lírico a Oxum, a rainha da água doce, dona dos rios e cachoeiras, cultivada no candomblé e na umbanda, religiões
de origem africana. “Dizem que não se mede a profundidade de um Rio/ com os dois pés.// Não mesmo.// O Rio foi feito para
se beber/ — com o corpo”.
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Há quase 100 anos, no final de 1925, o poeta modernista Manuel Bandeira escreveu o célebre “Poema tirado de uma notícia de
jornal”. Agora, Lívia Natália, com seus textos debruçados sobre o terror cotidiano, palmilha caminho similar ao traçado por Bandeira.
Mas, infelizmente, a poeta baiana o faz não diante de um caso único, isolado, o da morte de um cidadão conhecido como João Gostoso,
que se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.
Há duas diferenças nada sutis. A primeira: o caso de João Gostoso podia muito bem ser tomado como uma tragédia existencial.
Doente ou desGostoso, o homem teria decidido morrer afogado. O talento de Bandeira deu a essa tragédia pessoal uma dimensão
comovente e inapelavelmente lírica.
A segunda diferença: cem anos depois, o desassossego e o extermínio diário de brasileiros não envolve questões existenciais:
são gravíssimos problemas de segurança pública que desabam, como chumbo quente, especialmente sobre a juventude negra e
periférica das cidades.
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Doutora em literatura e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Lívia Natália (Salvador-BA, 1979) estreou
em livro com a coletânea Água Negra (Caramurê, 2011), obra destacada no Concurso Literário do Banco Capital. Publicou
em seguida os seguintes livros: Correntezas e Outros Estudos Marinhos (Oguns Toques Negros, 2015); Água Negra e Outras Águas
(Caramurê, 2016); Dia Bonito Pra Chover (Prêmio APCA de Melhor Livro de Poesia de 2017/Editora Malê); Sobejos do Mar
(Caramurê, 2017); e Em Face dos Últimos Acontecimentos (Caramurê, 2022). A autora também já se voltou para o público infantil,
com o livro em prosa As Férias Fantásticas de Lili (Ciclo Contínuo, 2018).
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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