Amigas e amigos,
Autor já conhecido aqui no poesia.net, o poeta mineiro Donizete Galvão (1955-2014) retorna mais uma vez
a esta página, agora trazido por um fato há muito esperado: o lançamento de sua Poesia Reunida, que sai este mês pela
editora Círculo de Poemas.
A organização do volume, que contém todos os nove livros publicados por Donizete Galvão, esteve a cargo dos poetas
Tarso de Melo e
Paulo Ferraz, amigos pessoais
do autor e conhecedores de longa data de sua obra. Para completar a edição, Melo e Ferraz convocaram dois professores
de Letras também próximos do autor: Viviana Bosi, (USP), e
Eduardo Sterzi (Unicamp), que
escreveram respectivamente a orelha e o posfácio do volume.
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Ao pensar neste novo boletim sobre a poesia de Donizete Galvão, considerei inicialmente mostrar aqui um poema de cada um
dos nove títulos reunidos. Depois, concluí que ficaria algo muito longo. Reduzi a seleção para apenas cinco poemas, porém
adicionei um bônus especialíssimo: um poema em prosa que não está no livro: saiu na revista literária Inimigo Rumor em 2003.
Passemos à leitura. O primeiro poema de nossa minisseleta é “Pássaros Urbanos”, extraído do livro póstumo O Antipássaro,
publicado em 2018. Neste texto o autor analisa a estranheza dos antipássaros que são as gruas das construções, espécies mecânicas
que, conforme o poeta, “têm as/ plumas/ mais/ vistosas/ da cidade”.
As gruas (guindastes da construção civil), homônimas das fêmeas do grou, aves de pernas e pescoços longos, destacam-se na paisagem
urbana e são um símbolo dos negócios, “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como canta Caetano Veloso. Basta lembrar
que agora, durante a pandemia, as gruas permaneceram em plena atividade.
Em contraste, outras aves, sem voz (“incanoras”, no dizer do poeta) e menos afortunadas, pertencentes à espécie Homo sapiens,
“habitam/ as junções/ dos viadutos/ entre trapos/ de papelão”. Neste poema, assim como em vários outros ao longo de sua obra,
Donizete Galvão dá provas de sua extrema habilidade ao tratar de temas difíceis como esse da injustiça e da desigualdade social,
sem nunca escorregar para o lugar-comum ou o recado panfletário.
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O próximo poema é “Deformação” (de Mundo Mudo, 2003). Agora, o personagem principal é outra ave, desta vez de verdade: com asas,
sangue e penas. Muitas penas. Trata-se de uma pomba atropelada no asfalto. O poeta finge depreciar o animalzinho, chamando-o de “pomba
suja/ urubuzinha de metrópole/ ratazana”. Mas na realidade ele se sente solidário e intimamente identificado com a ave.
Isso fica comprovado em vários outros textos de sua obra, especialmente no próximo poema, “A Cidade no Corpo”, do livro Pelo Corpo (2002).
Aí, ele diz, a respeito de São Paulo: “Esta cidade: minha cela./ Habita em mim/ sem que eu habite nela”. Mineiro de cidade pequena, Donizete Galvão
sempre considerou a megalópole paulistana um espaço sufocante. Isso explica os últimos versos dirigidos à pomba morta: “Bem feito para
você./ Viu o que a cidade nos fez?” Portanto, ele, homem, assume a mesma condição da ave despedaçada.
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O poema “Fora de Linha” (de Ruminações, 1999) põe em foco os “homens obsoletos”, expressão usada pelo poeta para designar
as pessoas que, embora tendo preparação profissional (“faculdade, inglês e cursos de pós-graduação”), não servem mais para as
novíssimas funções existentes nas empresas.
O último texto extraído de Poesia Reunida é “Cidade”, trazido do livro de estreia do autor, Azul Navalha, de 1988.
Coerente em toda a sua trajetória, o poeta, já desde aí, via a cidade grande como um “blues de cruciais impossibilidades”.
E mais: “nada de eterno palpita no seu coração/ tudo já nasce velho para ser refeito amanhã”.
Devo deixar claro que esta é apenas uma amostra de poemas seguindo o fio de uma das perspectivas da poesia de Donizete Galvão.
Mas há também vários outros rumos. Por exemplo, o da celebração da música e das artes plásticas, as reflexões existenciais, os
amigos e as memórias da vida no interior mineiro.
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Vem, por fim, o poema “Reportagem”, um bônus oferecido pelo poesia.net a seus leitores. Trata-se de um poema em prosa,
publicado originalmente na extinta revista literária Inimigo Rumor e nunca recolhido em livro.
O texto compõe-se de perguntas de um repórter a um homem sem-teto. “O senhor se incomoda de morar debaixo da ponte?”
Cada
interrogação inclui a anterior e vai acrescentando novo trecho: “O senhor se incomoda de morar debaixo da ponte com sua mulher
ainda tão jovem?”. O texto certamente parte de aberrações como aquelas comuns na televisão. A mãe acaba de ter o filho fuzilado
pela polícia, à porta de casa, e o repórter insiste em perguntar: “O que a senhora está sentindo?”
Mesmo quando expressava angústias profundas e complexas dores pessoais, Donizete Galvão sempre encontrava um jeito de fazer
essas mágoas passarem por filtros do cotidiano, em situações triviais, como a catraca do metrô, o ipê-roxo florindo em
São Paulo ou a pequena tragédia da pomba atropelada no trânsito.
O sofrimento donizetiano não é espacial, esotérico, hermético. Ao contrário: são dores que se expressam por meio de coisas
reais e quase existem de se pegar. É por isso que essa “Reportagem” sobressai tanto e provoca um rumor amigo de indignação
e empatia, sentimentos bem próximos de todos nós, leitores.
Nesse aspecto, acerta em cheio a professora Viviana Bosi,
quando fala, na orelha de Poesia Reunida, sobre a permanência da poesia de Donizete Galvão. Escreve ela:
“O que permite a duração é uma qualidade ruminativa da atenção fincada no afeto denso pelas coisas e gentes miúdas”.
No posfácio, Eduardo Sterzi vai no mesmo rumo. Ele diz que Donizete Galvão produziu uma poesia “que se recusa ao
espetáculo, que sobretudo não cabe na lógica da espetacularização e da mercadoria; uma poesia que insiste em olhar
para as coisas miúdas e para os seres à margem (...)”.
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Jornalista e publicitário, o poeta Donizete Galvão (Borda da Mata-MG, 1955; São Paulo-SP, 2014) escreveu os
seguintes livros: Azul navalha (1988); As faces do rio (1991); Do silêncio da pedra (1996);
A carne e o tempo (1997); Ruminações (1999); Pelo corpo (2002), em parceria com Ronald Polito;
Mundo mudo (2003); O homem inacabado (2010); e O antipássaro (póstumo, 2018).
O volume Poesia Reunida, a ser lançado este mês, contém todos os títulos acima. Mas a obra de Donizete Galvão
também inclui livros para crianças [O sapo apaixonado (Musa, 2007); Mania de bicho (Positivo, 2009); e
Escoiceados (Casa de Virgínia, 2014)], além da participação do autor em numerosas antologias coletivas.
Donizete Galvão já esteve aqui no poesia.net nas edições
n. 425;
n. 400;
n. 302;
n. 302a;
n. 236; e
n. 19.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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LANÇAMENTO
O lançamento
da Poesia Reunida, de Donizete Galvão, será no próximo dia 30/09, sábado, às 11h, na Casa das Rosas, Avenida Paulista, 37 - São Paulo-SP.
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CARVALHO E GALVÃO: COINCIDÊNCIAS
Permitam-me registrar uma coincidência. Em maio de 2018, quando este boletim atingiu o
n. 400, decidi fazer uma edição
comemorativa, homenageando poetas já destacados aqui, mas que infelizmente haviam falecido. Dois
nomes foram escolhidos: o cearense Francisco Carvalho (1927-2013) e o mineiro Donizete Galvão (1955-2014).
Curiosamente, Francisco Carvalho esteve no boletim
anterior a este, graças à antologia
Escaladas do Chão e da Vertigem (Confraria do Vento, 2022). Agora, chega a Poesia Reunida de Donizete Galvão.
Mas há ainda outra coincidência. Nos primeiros anos do poesia.net (2003/2004), quem me proporcionou o primeiro
contato com a obra de Francisco Carvalho foi exatamente Donizete Galvão, que me emprestou o livro Quadrante Solar,
com o qual Carvalho ganhara o Prêmio Nestlé em 1982.