Amigas e amigos,
O poeta em destaque neste boletim é o mineiro Donizete Galvão (1955-2014), que já esteve aqui em
quatro ocasiões
anteriores: na edição n. 400 (em parceria
com o poeta cearense Francisco Carvalho); n. 302
(boletim em que se noticia a morte do poeta); n. 236;
e n. 19.
Agora, Donizete Galvão retorna, trazido por seu livro póstumo O Antipássaro, lançado no final de 2018 pela editora Martelo,
de Goiânia. O poeta, falecido em janeiro de 2014, deixou em seu computador uma pasta de arquivos com indicação do título, a epígrafe
de Orides Fontela (“O pássaro / pesa / e caça / entre lixo / e tédio”) e os poemas, cada um escrito num arquivo Word. Seus herdeiros —
viúva e filhos — confiaram à dupla de amigos e poetas Paulo Ferraz
e Tarso de Melo a tarefa de organizar o livro.
Os organizadores incumbiram-se do difícil exercício de intuir quais estratégias o autor usaria para montar O Antipássaro. Vale
ressaltar que Donizete Galvão deixou os poemas (alguns inacabados), mas não havia um sumário que indicasse a ordem em que os textos
apareceriam. Ferraz e Melo lograram um resultado que honra e ressalta o trabalho do poeta Donizete Galvão. Para dar o arremate final
no mesmo padrão, convidaram o poeta e ensaísta carioca Antonio Carlos Secchin, que escreveu o posfácio do livro.
Falta, ainda, falar do livro em si. O volume, enquanto objeto de ver e folhear, representa um trabalho primoroso, com projeto gráfico,
capa e ilustrações da designer pernambucana Hallina Beltrão.
•o•
O Antipássaro é uma pequena coletânea (31 poemas) em que se pode reconhecer a poesia de Donizete Galvão. Conhecedor da obra
do poeta, o posfaciador Antonio Carlos Secchin ressalta exatamente esse ponto. Ele identifica nos títulos dos livros de Galvão uma
sequência de símbolos indicativos de falha (exemplos: Mundo Mudo; Homem Inacabado), na qual também se insere esse antipássaro,
um pássaro negativo. Conclui Secchin: “É desse universo de perdas & danos que a poesia de Donizete sempre se abeira".
De fato, não há n’O Antipássaro nenhum desvio do eixo fundamental da poesia de Donizete Galvão. Acredito que os seis poemas
ao lado, extraídos do livro, mostram bem isso. O primeiro deles é “Pássaros Urbanos”. Neste poema o autor considera a estranheza dos antipássaros
que são as gruas das construções. Nelas, diz, “ave / nenhuma / faz seu / ninho”. Mesmo assim, essas espécies mecânicas “têm as / plumas /
mais / vistosas / da cidade”.
As gruas (guindastes), homônimas das fêmeas do grou, destacam-se na paisagem urbana e são um símbolo dos negócios, “da força da grana que
ergue e destrói coisas belas”, como canta Caetano Veloso. Outras aves, sem voz (“incanoras”) e menos afortunadas, pertencentes à
espécie Homo sapiens, “habitam / as junções / dos viadutos / entre trapos / de papelão”.
Neste poema, assim como em vários outros d’O Antipássaro, Donizete dá provas de sua extrema habilidade ao tratar de temas
difíceis como esse da injustiça e da desigualdade social sem nunca resvalar para o lugar-comum ou o recado panfletário.
•o•
O próximo poema é “Carta”. Aqui ele revisita o tema da dificuldade de adaptação na cidade grande. Alguém, já residente
na metrópole, tenta dissuadir amigos ou parentes que manifestam a intenção de também ir para lá. E mais: esperam do amigo alguma ajuda ou
incentivo. O final é patético: “São Paulo é muito grande. / Eu sou muito pequeno.”
No texto “Maio”, o poeta se apresenta em diapasão mais lírico, encantado com as flores de outono dos ipês encontradiços em muitos
bairros paulistanos. Mas, para lembrar a constatação de Antonio Carlos Secchin, a beleza dos ipês não cancela o “universo de perdas
& danos” no qual se move a poesia de Galvão. As árvores floridas apenas abrigam, por um breve instante, o homem que as aprecia,
aliviando-o de sobressaltos. Entende-se, portanto, que a moeda comum não é o idílio dos ipês, mas o desassossego.
•o•
Vem a seguir o poema “Invisíveis”. Conforme está indicado na epígrafe, trata-se de um poema inspirado no livro Homens Invisíveis -
Relatos de uma Humilhação Social (Globo, 2004). Seu autor, o psicólogo Fernando Braga da Costa, fez um estudo no qual acompanhou,
durante mais de dez anos, o trabalho dos garis da Cidade Universitária da USP, em São Paulo. Braga da Costa constatou que esses
trabalhadores são relegados à condição de pessoas “invisíveis”.
O poema de Donizete Galvão retoma esse caso de humilhação social, estendendo-o a outras categorias de trabalhadores humilhados,
como os “arrebenta-pedras” (operadores de britadeiras), os recolhedores de lixo, faxineiros, pedreiros e boias-frias.
•o•
No poema “Aquele Mês”, o poeta parece rememorar um momento de extremo sofrimento pessoal, quando passou dias angustiantes num
hospital, “em contenda / com a insistente visitante”. Não foi dessa vez que a indesejada conseguiu levá-lo, mas
o poema sugere o terror de enfrentar essa sinistra senhora.
Em “Língua-mãe”, o último poema de nossa seleção, o autor mostra um pouco de sua visão sobre a criação poética. Para ele, a
poesia representa “uma solidão que vem desde o cordão umbilical”. É também, ao mesmo tempo, uma entidade que nem se revela
nem permite que alguém se acerque dela e consiga revelá-la.
•o•
Há ainda uma nota auspiciosa a respeito do livro O Antipássaro: conforme adianta o editor goianense Miguel Jubé, da Martelo,
esse volume encerra a publicação de poemas inéditos de Donizete Galvão e dá o primeiro passo no sentido da publicação, pela
mesma editora, da poesia completa do autor. Alvíssaras!
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
Curta o poesia.net no Facebook:
•o•
ERRATA
No boletim anterior, n. 424, ao
listar os 16 poetas citados, dei como datas de nascimento e morte do pré-camoniano Sá de Miranda (1481-1558) as mesmas datas de Luís Vaz de Camões
(1524?-1580), também presente na lista. Aí estão os dados corretos. No site, o boletim já foi ajustado. Agradeço à poeta Angélica de Carvalho,
conterrânea dos dois autores quinhentistas, a identificação do equívoco.
•o•
INÍCIOS ARREBATADORES
Ainda sobre o poesia.net n. 424. Essa edição sobre inícios envolventes de poemas tornou-se uma das mais populares do boletim. Muita gente
me enviou comentários, aprovando minha seleção ou apontando a ausência de poemas. Alguns leitores, mais diligentes, chegaram a enviar listas
com outros inícios. Isso enseja a possibilidade de um novo boletim — um “Inícios Poderosos 2” —, somente com aberturas de poemas apontadas por leitores.
Agradeço a entusiasmada participação.
•o•
LANÇAMENTO
Canções Meninas
Mariana Ianelli
A poeta e crítica literária paulistana Mariana Ianelli lança o livro Canções Meninas (Ardotempo, 60 págs.). Volume de arte e poesia, traz poemas de Mariana ilustrados por desenhos e pinturas de sua filha Yolanda, de 2 anos.
Quando:
Sábado, 29/06/2019, às 15h
Onde:
Casa Contemporânea
Rua Capitão Macedo, 370
Vila Mariana
São Paulo, SP