Donizete Galvão
Caros,
O poeta e jornalista mineiro Donizete Galvão (1955-) é uma das vozes mais
expressivas da geração que começou a publicar nos anos 80. Com seis livros de
poesia, Galvão participou de diversas antologias e é presença constante nas
revistas literárias.
Vejo na poesia de Donizete Galvão duas principais linhas de força que se completam e
realimentam. Uma é sua intensa ligação com a Minas natal ("Nunca saí dessa Minas
que não termina"), que lhe traz uma certa nostalgia crítica da vida
do interior. "Borda da Mata/ ata-me/ Borda da Mata/ mata-me", canta ele num mantra criado com o nome de sua cidade de origem.
A outra linha de força é traçada pelo desconforto do poeta com a vida na cidade
grande. Aí se nota sua sensação de asfixia nas ruas, dentro dos carros e dos
prédios de vidro. Nessas dimensões do poeta, o ponto comum é o olho aberto para os
detalhes da experiência humana.
Ao lado, duas amostras da poesia de Galvão. "Simulacros", do livro A Carne e
o Tempo (1997), mostra, com um misto de humor e tristeza, os personagens de um
circo mambembe e suas peripécias pelas cidades do interior. O outro poema,
"Auto-Retrato Como Boi", é um dos textos que justificam o título de seu livro de
1999, Ruminações.
Nesse auto-retrato, combinam-se o mal-estar do interior (a carga de ser "boi de
canga", "boi sangrado por ferrão") e o desconforto da metrópole, onde sofre e
rumina o mesmo boi, agora "com crachá e carteira assinada" e "indistinto na
boiada da cidade".
Outro aspecto marcante da poesia de Donizete Galvão é essa inescapável aderência
à realidade. O poeta sabe que na verdade não há o que cantar, senão o vivido. É o
que ele sugere no final de um poema belíssimo, "Mapa", também de Ruminações:
"sem esperanças sem consolo/ com a paciência de um boi/ segue tua trilha de
erros:/ rastro de palavras/ marcas da passagem/ serpentear de frases/ mapas de
dor e descontentamento".
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
Veja também sobre Donizete Galvão os boletins:
- poesia.net 236
- poesia.net 302
- poesia.net 302-A |
Ruminações urbanas
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Donizete Galvão |
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Stephen Baker, americano, Sem título
SIMULACROS
Para Christina Menezes de Azevedo
Senhoras e senhores, o circo já ergueu sua lona.
Vêm o prefeito, a beldade, as mulheres da zona.
Todos se divertem com o espetáculo do ilusório.
Está aberto o reino do precário e do provisório.
Rufam todos os tambores, abrem-se as cortinas.
Nossa trupe mambembe exibe suas dores e sinas.
A orquestra toca Bolero: o ritmo vai crescendo.
O fraque do maestro tem no braço um remendo.
Eis Crystal Kimberley, a rainha do strip-tease.
Saiu do sertão do Sergipe, de nome Wandernise.
A mulher-rã, contorcionista vinda do circo russo,
Depila pernas e sovacos, mas se esquece do buço.
Com vocês, uma feroz leoa da savana africana.
Barriga vazia, não come gato há uma semana.
A pássara Tatiana, trapezista bela e impávida,
Esconde do amante domador que está grávida.
Anaïs, índia guarani, que é exímia equilibrista,
Carece de vitaminas e de ir urgente ao dentista.
Alegria da criançada, o nosso palhaço Arrebita,
No trailer sujo, teve macarrão e ovo na marmita.
De noiva, vai-se casar uma anã, loira oxigenada.
Que graça! Puxam-lhe o vestido e ela corre pelada.
Aplausos para o salto mortal de sonho e pobreza.
Onde uns vêem o belo, outros enxergam a tristeza.
Stephen Baker, Sem título
AUTO-RETRATO COMO BOI
Eu boi.
Boi de mim mesmo.
Boi sonso.
Boi de canga.
Boi de carro.
Boi de ônibus.
Boi de arado.
Boi sangrado por ferrão.
Boi de carreto
Boi em prédio de vidro.
Boi com crachá
e carteira assinada.
Boi comprovado.
Boi indistinto
na boiada da cidade.
Boi tangido.
Boi bernento.
Boi de joelhos
sem um mugido
na escuridão.
No curral da insônia,
rumino palavras pastadas
na ribanceira dos dias.
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