Amigas e amigos,
Desde o início dos atuais conflitos na Faixa de Gaza, neste mês, comecei a pensar em fazer um boletim com poemas sobre Gaza, definida
como a maior prisão a céu aberto do mundo. Só que eu não conhecia nem poetas nem poemas que tratassem da questão palestina.
Em dado momento, alguém me enviou um zap com a notícia de que a jovem poeta feminista palestina Heba Abu Naba, de 32 anos, fora morta
num bombardeio israelense sobre a cidade de Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Curioso, fui à internet ler sobre Heba Abu Naba.
Durante a leitura, descobri uma xará dela, a pintora palestina Heba Zagout. Ao apreciar os trabalhos dessa artista, imaginei: aí estão bons quadros para ilustrar
um boletim. Mas depois, na página de Instagram da pintora, percebi que as mensagens mais recentes eram de pêsames e consternação. Sim, tristeza. A pintora
Heba Zagout, de 39 anos, também fora vítima dos bombardeios, dias antes da poeta. Segundo o noticiário, morreu junto com os dois filhos.
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Reforçou-se em mim a ideia de fazer o boletim palestino. Mas cadê os poemas? Acabei descobrindo o livro Gaza, Terra da Poesia, publicado em 2022 pela Tabla,
editora carioca. Trata-se de uma antologia que reúne 17 jovens poetas da Faixa de Gaza, com organização de um deles, Muhammad Taysir. Escrito em árabe,
o livro foi originalmente publicado no Líbano, em 2021. Para pôr os poemas em português, entrou em ação o Grupo de Tradução da Poesia Árabe Contemporânea
(gtpac), da USP, coordenado por Michel Sleiman.
Na publicação de Gaza, Terra da Poesia, há um aspecto que é importante sublinhar: todos os recursos arrecadados com a venda desse livro
serão revertidos para o Tamer Institute for Community Education, uma ONG que trabalha com educação na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Saiba mais
na página da antologia, no site da Editora Tabla.
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Com essa antologia em mãos, tornou-se possível organizar o boletim. Selecionei alguns poemas, mostrados ao lado, e juntei-os a algumas pinturas de Heba
Zagout. Da pequena amostra que organizei participam cinco poetas: três mulheres (Amal Abuqamar, Muna Almassdar e Fatima Ahmad)
e dois homens: Ahmad Assuq e Bassman Adirawi.
Um detalhe: fui ao site da Editora Tabla e consegui as fotos de alguns dos autores, não de todos, que podem ser vistas antes dos poemas.
Para os poetas sem foto, incluí no lugar a imagem de Handala. Quem é Handala? Trata-se de um personagem (garoto de 10 anos) criado pelo cartunista
palestino Naji al-Ali (1937-1987).
Handala é um ícone da identidade e da resistência do povo palestino. Há uma coletânea de poemas palestinos
em inglês com o título Show Us Your Face, Handala! (Mostre-nos o seu rosto, Handala! Isso talvez se refira ao fato de o menino sempre
aparecer de costas). Handala também é citado num dos poemas de nossa minisseleta, como se verá mais abaixo. A inexistência de fotos dos poetas
me levou a pôr Handala também no espaço destinado à foto do(s) autor(es), no alto desta coluna.
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Passemos à leitura. A primeira poeta é Amal Albuqamar, professora da cidade de Gaza. Seu poema tem como título “Para a morte. Quando a
morte virou símbolo nesta cidade?”. Numa região cercada e frequentemente bombardeada, não parece estranho que uma jovem insista em tratar da morte.
Diz ela: “Morre a vida da areia,/ morrem as trepadeiras em cima dos corpos nos muros destruídos que não conservam as lágrimas dos perdedores./
Tudo aqui morre, tudo menos os mortos./ A morte aqui é eternidade (...)”.
A descrição crua do ambiente continua em versos como “A morte aqui é a luta,/ luta entre as coisas esvaziadas de sua realidade /
e uma mulher que, como eu, esfrega o corpo com o sal do nada”.
Muna Amassdar é a próxima autora. Já publicou livros em verso e prosa. Trabalha como tradutora e escreve artigos em árabe e em inglês.
Selecionei dela o poema “Joguinho”. Eis aí outro texto a mostrar que a guerra reside cotidianamente em Gaza — e também dentro de todos.
“Quem apaga a guerra dentro de mim/ e me empresta um pouco de esquecimento?”, inicia o poema. O “joguinho” do título consiste exatamente
em perguntar: existem formas de esquecer, de não tomar conhecimento desse terrível dia a dia?
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Vem a seguir a poeta Fatima Ahmad. No livro, a minibio dessa autora é a mais extensa de todas. Aparentemente, ela é que sofreu de
forma mais direta as violências em Gaza. Conforme seu perfil traçado na antologia, Fatima já escapou várias vezes da morte. Em 2008,
teve a casa destruída, ficou com um projétil alojado nas costas e seu filho perdeu um olho.
No poema “O Calor da Lua” ela traça um retrato da região: “Aqui as ideias nascem livres em torno das flores de romã/ e nas celas
a ideia é enterrada viva”. Em outro texto, “Pranto em Modo Clássico pela Terra Palestina”, o eu poético, apesar de todas as dificuldades,
insiste em permanecer: “Eu vou porque o cheiro da terra ainda me chama,/ com toda minha determinação eu vou. / Não vou parar, não vou olhar para trás (...)”.
Nesse poema, Fatima Ahmad invoca o personagem-símbolo palestino: “Levante-se, Handala, / não vire as costas, não cruze as mãos atrás,/
seja nosso rosto novo”. Como se vê, ela faz referência à imagem do garoto, que no cartum não mostra o rosto, está sempre de costas e
mantém as mãos para trás.
Vem agora o poeta Ahmad Assuq. Nascido na cidade de Gaza, escreve poesia e prosa. No poema “Esperando por Você”, alguém traça planos
para “quando a guerra terminar”. Outra vez, inevitavelmente, tudo gira em torno do conflito. O texto descreve os sentimentos de sobreviver
a um bombardeio. “Vimos juntos as bombas / que rasgam as pessoas / como trapos esgarçados / quando caem sobre elas / feito feras em fúria”.
Para encerrar nossa pequena seleta, chega o poeta Bassman Addirawi. Natural da cidade de Gaza, nasceu em 1988 e escreve
em árabe e em inglês. No poema “Filhos Desobedientes”, ele trata seus temores como filhos rebeldes que crescem contra a vontade do pai.
E vem o que já se espera: “Nas horas de guerra, correm para meu coração / procurando um lugar mais quente que meus pés gelados”.
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Após a leitura desses versos de cinco dos dezessete poetas reunidos na antologia Gaza, Terra da Poesia, o leitor certamente
tenderá a concordar com a apreciação da professora e poeta mineira
Maria Esther Maciel no prefácio da antologia.
Para ela, os textos desses jovens palestinos se sustentam “do contraste entre violência e beleza, morte e força vital”.
Ela lembra os setenta anos de conflitos que assolam a região e conclui: “O que esses jovens autores trazem de novidade dentro desse
contexto é o frescor, a vontade de que a situação sociopolítica se converta em tempos de luminosidade e esperança”.
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Heba Zagout, pintora, e Heba Abu Naba,
poeta feminista
Antes de concluir, quero destacar as duas artistas palestinas que, de certo modo, me levaram a este boletim,
Heba Zagout (1984-2023) e Heba Abu Nada (1991-2023). Autora dos quadros ao lado, Heba Zagout nasceu na cidade de Gaza,
estudou design gráfico e graduou-se em Belas Artes na universidade Al-Aqsa. Sobre sua pintura, ela declarou a uma revista: “Tratei
de expressar os sentimentos, emoções e tensões negativas que ocorrem em Gaza. Considero a arte uma mensagem que entrego ao mundo
exterior por meio de minha expressão da causa palestina e da identidade palestina”. Heba Zagout morreu aos 39 anos em 13 de outubro
último, junto com os dois filhos pequenos, num bombardeio na cidade de Gaza.
Mais jovem que Zagout, Heba Abu Nada nasceu em Meca, na Arábia Saudita. Estudou bioquímica na Universidade Islâmica de Gaza e fez
o mestrado em Nutrição Química. Poeta e prosadora, em 2017 publicou o romance Oxygen is Not for the Dead (O oxigênio não é
para os mortos). Heba Abu Nada, de 32 anos, morreu em decorrência de um bombardeio em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza,
no dia 20 de outubro.
Seu último poema, escrito um dia antes de sua morte, diz: “A noite na cidade é escura, exceto pelo brilho dos mísseis; silenciosa,
exceto pelo som do bombardeio; aterradora, exceto pela promessa lenitiva da oração; tenebrosa, exceto pela luz dos mártires”.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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