Número 520 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 15 de novembro de 2023

poesia.net header

«toda ausência/ é um cão/ que gane/ sem despedaçar/ o silêncio» (Vera Lúcia de Oliveira) *

Compartilhe pelo WhatsApp

facebook  facebook 
Angélica Torres Lima  e Uaçaí de Magalhães Lopes
Angélica Torres Lima e Uaçaí de Magalhães Lopes


Amigas e amigos,

MAIS UMA VEZ, UM PEDIDO

Decidi, aqui, repetir um apelo que fiz a vocês no poesia.​net n. 350. Agora, na edição 520, mais de 7 anos e exatas 170 edições depois, algumas mudanças justificam essa repetição. Na época, tínhamos cerca de 4 mil assinantes (pessoas que recebem o boletim por e-mail). Hoje esse número caiu para 2818 — registro da presente edição.

Como veem, os leitores do boletim estão minguando. Sei, mais ou menos, os motivos disso. De um lado, o próprio e-mail perdeu espaço como recurso de comunicação, diante das redes sociais, do WhatsApp e de outros aplicativos mais ágeis. Então, muita gente simplesmente abandona suas contas de e-mail. Com frequência, recebo do Yahoo, UOL, Terra, Hotmail e Gmail a informação de que a conta do assinante foi extinta por falta de uso.

De outro lado, a cada edição recebo também alguns pedidos de cancelamento da assinatura, feitos pelos próprios assinantes. Além disso, é pequena a quantidade de novos inscritos. Assim, os que chegam nem de longe compensam os que saem.

Em resumo, o contingente de leitores que recebem o boletim por e-mail vem sofrendo permanente redução. Talvez parte das pessoas que saem continue a ler o poesia.​net no site, a partir das chamadas feitas no Facebook e no Instagram. Trata-se de uma hipótese que faz sentido, mas não tenho elementos que me permitam afirmar a existência desses leitores, nem quantos são.

Dado o contexto, passo ao pedido. Em minha visão, poesia não é algo que se deva forçar alguém a ler. Creio que uma publicação como o poesia.​net só interessa a quem nutre algum apreço pela palavra poética. Então, a intenção do pedido não é engordar a circulação do poesia.​net nem, muito menos, conquistar artificialmente um leitorado que não está nem aí para a poesia. O boletim não tem anunciantes nem patrocinadores. Por isso, nesse aspecto, tanto faz se ele conta apenas com os atuais assinantes ou se passa a ser lido por um contingente dez ou cem vezes maior.

Contudo, se um trabalho está sendo feito — e está disponível gratuitamente —, é razoável propor a quem o aprova que também o divulgue. Isso, aliás, já é feito por muitos leitores. Depois, há sempre alguém que talvez aprecie o boletim, porém não tem sequer notícia da existência dele.

Portanto, caras amigas e caros amigos da poesia, aqui vai meu apelo: divulguem o poesia.​net !

•o•

Curiosamente, recebi há poucas semanas dois livros de poemas contendo apenas haicais. isso não é comum. Li os dois volumes e decidi montar um boletim. Portanto, você vai encontrar aqui poemetos da goiana Angélica Torres Lima, extraídos da coletânea Diminutos - haicai à brasileira (7Letras, 2023), publicada com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal. Os outros poemas vêm do livro Haicais, do baiano Uaçaí de Magalhães Lopes (editora Mondrongo, 2023), no qual o autor reúne sua produção haicaística de 1986 a 2023.

Antes de passar à leitura, considero de bom-tom relembrar a origem do haicai (ou, se quiserem, haikai). Trata-se de um gênero poético de forma fixa criado no Japão. É um poema curtíssimo, de apenas três versos: os primeiro e o terceiro são redondilhas menores (versos de cinco sílabas); e o segundo, uma redondilha maior (verso de sete sílabas).

Na tradição japonesa, o haicai constitui um poemeto lírico, em geral ligado à observação da natureza. É comum encontrar haicais de primavera, haicais de verão etc. Esse gênero poético chegou à Europa no século XIX e aportou no Brasil somente no século XX, pelas mãos de poetas modernistas. Um pioneiro entre nós foi o paulista Guilherme de Almeida (1890-1969), que não apenas adotou o haicai como criou para ele traços bem brasileiros.

Originalmente, o haicai não tem rimas nem título. Guilherme de Almeida engendrou um formato no qual o primeiro e o terceiro versos rimam entre si, enquanto o segundo verso contém duas rimas intenas, que ocorrem na segunda e na sétima sílabas. Exemplo: “Na cidade, a lua:/ a joia branca que boia/ na lama da rua”. Além das rimas, Almeida deu título a todos os seus haicais. Este se chama “Noturno”.

Com o passar do tempo, o haicai foi conquistando outros poetas brasileiros, entre os quais destacam-se nomes como Pedro Xisto (1901-1987), Millôr Fernandes (1923-2012), Paulo Leminski (1944-1989) e Alice Ruiz (1946-). Naturalmente, nem todos seguiram ou seguem a forma proposta por Guilherme de Almeida, nem tampouco mantêm o esquema métrico tradicional japonês.

•o•

Passemos à leitura. De cada um dos poetas enfocados aqui selecionei oito haicais. Comecemos com os poemetos do livro Diminutos, de Angélica Torres Lima. A poeta goiana mantém o padrão de três versos curtos, mas não respeita a métrica das 5-7-5 sílabas.

Nos oito textos selecionados, o estilo é bem nipônico, pois apresentam observações da natureza. Exemplo: “escultura natural:/ garça em pose/ sobre o museu nacional”. A exceção fica com o último haicai, “tomara que caia” (como não há título, refiro-me ao poema pelo primeiro verso). Neste, a poeta faz uma bem-humorada brincadeira metalinguística com a saia de alguma mulher.

No penúltimo haicai da seleção, “o que mais te apraz [?]”, Angélica Lima também se desvia um pouco da descrição de um evento natural e endereça uma pergunta ao leitor. Mas, curiosamente, a indagação envolve, mais uma vez, aspectos da natureza: “o que mais te apraz:/ pedra que voa?/ nuvem que cai?”.

•o•

Vêm, agora, os oito haicais do poeta baiano Uaçaí de Magalhães Lopes. Você notará, desde logo, que o haicaísta baiano segue o padrão métrico japonês (5-7-5 sílabas) e também o esquema de rimas proposto por Guilherme de Almeida, com eventuais alterações. Em alguns casos, a rima nas sílabas 2 e 7 do segundo verso, desloca-se para as posições 3-7 ou 1-7.

Um traço bem peculiar nos haicais de Uaçaí Lopes é a temática baiana. Além de escrever haicais citando lugares de sua terra (Itapuã, Itaparica, Ipitanga), ele investe na ironia. É o caso, por exemplo, do poemeto “Teu nome na areia”. Aqui, a eternidade do amor é bem curta: dura somente enquanto a maré se mantém baixa e os nomes dos apaixonados permanecem escritos na areia.

Outro haicai interessante é “Praia de Ipitanga”. Uma banhista de tanga é tratada pelo eu poético como “abrolhos para meus olhos”. No Aurélio, “abrolhos” são rochedos à flor d’água, sinônimos de obstáculos perigosos para os navegantes. O dicionário ensina ainda que “abrolho” vem do latim aperit oculos, ou seja, “abre os olhos”.

Mas o poeta também faz o haicai se despedir de Tom Jobim (suponho que o texto “Foi-se Tom Jobim” tenha sido escrito por ocasião da morte do autor de “Águas de março”, em 1994) ou mesmo, em diapasão bem baiano, comemorar o dia 2 de fevereiro (festa de Iemanjá) com o terceto “Ah! quanto veleiro!”.

•o•

Os dois poetas destacados nesta edição já apareceram antes no poesia.​net.

Angélica Torres Lima (Ipameri-GO, 1952) esteve nos boletins n. 348 e n. 257. É jornalista da área cultural e autora de livros de poemas como O Nome Nômade (7Letras, 2015); O Poema Quer Ser Útil (LGE, 2006); e Paleolírica (Alô Comunicação, 1999).

Uaçaí de Magalhães Lopes (Feira de Santana-BA, 1957) já esteve aqui na edição n. 383. É poeta, professor, consultor e auditor de projetos sociais. Publicou, entre outros, os livros de poesia Forma e Fraga (Mondrongo, 2020); A Flor e a Fraga (Mondrongo, 2017); e O Voo do Assanhaço (Açaí, 2004).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado




Haicais à brasileira

• Angélica Torres Lima
• Uaçaí de Magalhães Lopes


              



Fabián Perezz- Geisha with white flowers II
Fabián Pérez, pintor argentino, Gueixa com flores brancas II


• Angélica Torres Lima


meio-dia a pino:
cidade afogueada
terra de zinco

pendurado entre galhos
o sol esperneia:
raios grafitam paredes

pássaros tocam
o sol nos sonhos:
boceja o dia

escultura natural:
garça em pose
sobre o museu nacional



Fabián Perez- Michiko
Fabián Pérez, Michiko


vaidosa: a lua
se olha nos espelhos
d’água do mundo

lua namoradeira:
fiz um haicai para ela
e eis que surge a bela!

o que mais te apraz:
pedra que voa?
nuvem que cai?

tomara que caia
um haicai
na tua saia



Fabián Perez - Embrace at train station
Fabián Pérez, Abraço na estação de trem


• Uaçaí de Magalhães Lopes


Sabiá cantando
para mim no meu jardim:
estarei sonhando?

Tarde em Itapuã.
Sereia canta na areia,
louvando Iansã.

Em Itaparica,
desejo o primeiro beijo
na Fonte da Bica.

Manhã de novembro
na Bahia, quem diria:
do sol nem me lembro.



Fabián Perez - Dancer in red and white
Fabián Pérez, Dançarina em vermelho e branco


Praia de Ipitanga.
Abrolhos para meus olhos:
morena de tanga.

Foi-se Tom Jobim.
O amor, o sorriso e a flor
ficam para mim. 

Teu nome na areia.
Rente ao meu eternamente,
até a maré cheia.

Ah! quanto veleiro!
Salvador, o mar em flor:
dois de fevereiro. 




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
facebook.com/avepoesia
instagram.com/cmachado.poesia
Carlos Machado, 2023


Foto Angélica Torres Lima: Gabriella Cardell


• Angélica Torres Lima
   in Diminutos: haicai à brasileira
   7Letras, Rio de Janeiro, 2023
• Uaçaí de Magalhães Lopes
   in Haicais
   Mondrongo, Itabuna-BA, 2023
_____________
* Vera Lúcia de Oliveira, in Minha Língua Roça o Mundo (2016)
______________
* Imagens: obras de Fabián Pérez (1967-), pintor argentino.