Número 521 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 29 de novembro de 2023

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«A Dor humana busca os amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» (Cesário Verde) *

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André Caramuru Aubert
André Caramuru Aubert



Amigas e amigos,

Romancista, poeta e tradutor, o paulistano André Caramuru Aubert já compareceu a esta página poética em duas outras ocasiões: nas edições n. 444, em 2020, e n. 339, em 2015. Agora ele retorna, trazido pelo lançamento do livro A poesia que há, publicação da Rizoma Projetos Editoriais, de Itajaí-SC.

Na nota introdutória, o autor revela que escreveu todos os poemas de A poesia que há entre setembro de 2018 e setembro de 2020, já em pleno ambiente da pandemia de covid-19. O livro é organizado em duas partes, chamadas “Praga & Ossos” e “Carne & Alma”, cada uma com 36 poemas, todos providos de um número (1 a 36) seguido de um título. Assim, há, por exemplo, dois poemas n. 15, com títulos diferentes, um em cada divisão do livro. Para esta edição, selecionei seis poemas, três da primeira parte e três da segunda.

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Vamos à leitura. O primeiro texto de nosso pequeno mostruário é “12. poema”, uma observação sobre a obrigatoriedade de sorrir. O eu poético desse poema se pergunta quando isso passou a valer socialmente. Será que alguém sabe? Eu não sei, mas desconfio que haja, por trás disso, planejada ou não, alguma artimanha de marketing, reforçada, nos últimos anos, pelos truques perniciosos das redes sociais.

O próximo poema é “18. o copo”, um texto ecológico que apresenta a incrível trajetória de um copo de plástico, desde quando é lançado na rua até parar, como um objeto letal, na garganta de uma tartaruga marinha.

Vem a seguir “28. rua”, o último poema da seleção ao lado extraído da parte 1 de A poesia que há. Aqui aparece, à porta de um bar, “um sujeito sentado, acompanhado // da solidão espessa / da velhice”. Um flagrante triste de um cidadão meio jogado fora num canto sujo e decadente da cidade. É como se o poeta fizesse uma fotografia mostrando o velho solitário e o ambiente em que bebe cerveja e deixa o tempo passar.

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Avancemos para os poemas da segunda parte. “11. pôr do sol” nos oferece uma reflexão que se pode classificar como lírico-amorosa. Um casal, sentado, assiste ao pôr do sol e divide segredos com o astro rei.

O próximo texto é “22. poema”. Escrito em São Bento de Sapucaí-SP, em janeiro de 2020, dá notícia de um fato presenciado pelo autor: “um alto-falante instalado na capota de um velho ford corcel anuncia / (com pesar) que dona neusa, a neusa do banco do brasil, / morreu na noite passada”. Para lembrar Manuel Bandeira, é um poema desentranhado de uma notícia veiculada pelo alto-falante.

Este poema constitui uma página bem característica da poesia de André Caramuru Aubert: versos prosaicos, destituídos de adornos e teimosamente colados à pele da realidade. Observe-se que, como já destaquei em outra edição, praticamente não há nos poemas dele recursos tradicionalmente associados à poesia, tais como métrica, rimas, paralelismos, metáforas e elementos que deem ao texto alguma inflexão musical.

Nesse aspecto, pode-se dizer que a poesia de André Caramuru assume traços completamente antiverlainianos. De fato, não se encontra nela nenhum sinal do famoso mantra de Paul Verlaine: De la musique avant toute chose (“a música antes de tudo”). Na verdade, se quisermos encontrar alguma filiação para a poesia de Caramuru, ela está na poesia estadunidense do século XX, notadamente no estilo prosaico e factual desenvolvido por William Carlos Williams.

Chega, por fim, o último poema de nossa minisseleta, “36. a poesia que há”, que é também a página que dá título ao livro. Mais uma vez, o poeta entra na seara do lirismo amoroso, aqui avançando para o relacionamento íntimo de um casal. Estamos, portanto, diante d’ “a poesia que há no que a pele sente quando sente / que há nela outra pele, / encostando, os corpos, a calidez, as pernas / entrelaçadas” (...).

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André Caramuru Aubert (São Paulo-SP, 1961) é historiador, tradutor, poeta, romancista e editor. Colabora no jornal literário paranaense Rascunho, no qual apresenta e traduz poetas estrangeiros. Prosador, Caramuru publicou os romances A Vida nas Montanhas; A Cultura dos Sambaquis; Cemitérios; Só uma estranha luz como pensamento; Poesia Chinesa; e Estêvão.

Na poesia, seus livros são outubro / dezembro (2015); As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros (2016); e Se / O que eu vi (2019), todos pela Patuá, além do atual A poesia que há (Rizoma, 2023).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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A poesia que há


• André Caramuru Aubert


              



Evgeniy Monahov - Lady-2009
Evgeniy Monahov, pintor russo, Mulher (2009)


12. poema

o que está escrito na placa é uma instrução para mim, diz que
devo sorrir, e é isso que vou fazer, porque devo fazê-lo, porque
sorrio sempre, faz parte da etiqueta, dos bons modos, mesmo
quando eu sei que a próxima esquina não trará alívio, que a
noite não trará alívio (a madrugada, muito menos), quando
sei enfim que nada trará alívio eu sorrio, sorrio sempre que
se requer isso de mim, e nas fotografias, em todas elas, eu
sorrio, apesar dos meus suíços dentes podres eu sorrio, e
só fico imaginando em que momento da história passou a
ser obrigatório aparecer sorrindo em fotografias, na mesma
época, quem sabe, em que ser feliz passou a ser uma obrigação
	         até mesmo
			          para as pessoas tristes?

18. o copo

desde umas dez da manhã com este copo de plástico.
por pelo menos três vezes eu o enchi de água;
e por pelo menos três vezes, bebi.
agora já passou da hora do almoço, vem chegando a chuva.
				vou me despedir
do copo, lançá-lo à rua. e ele vai viajar, navegar,
			começará balançando,
de um jeito meio errante,
	na enxurrada do meio-fio,
		depois entrará pela porta do bueiro,
seguirá por algum riacho canalizado
	até o rio tietê, de lá para o paraná, para o prata,
passará por buenos aires,
desembocará no atlântico sul.
ah, meu copo quer
conhecer o mundo, eu sei. ele vai, e ele talvez só pare no dia
em que,
apaixonado, com os braços abertos despedaçados, descobrir-se
entalado na garganta
de alguma
		tartaruga
				marinha.



Evgeniy Monahov - Olga, put away your iPhone
Evgeniy Monahov, Olga, guarde seu iPhone!


28. rua

as sandálias quase não se erguem do chão, vão se arrastando
pelas calçadas sujas, mal desviando de bitucas de cigarro,
de marcas de cusparada, de cocôs de pombos e de cachorros,
e lentamente na mesinha, diante da porta do bar
uma cerveja, o movimento da rua, é quase meio-dia,
um sujeito sentado, acompanhado

da solidão espessa
da velhice.

      São Paulo, outubro de 2019



11. pôr do sol

nós dois aqui sentados olhando e você bem sabe que,
em mais alguns minutos, o sol,
aquele sol vermelho enorme no horizonte, no oeste
(sol que nesta hora
e nesta época do ano, já mal nos aquece)
vai sumir por detrás da cidade, trazendo a noite.
e vai levar com ele um milhão de segredos,
das tantas cenas que viu hoje,
que viu e que não contou pra ninguém. mas duas ou três
dessas cenas, dois ou três desses segredos, porém,
você e eu sabemos quais são.



Evgeniy Monahov - Girl with air balloons - 2011
Evgeniy Monahov, Moça com balões de ar (2011)


22. poema

é cedo nesta cidade pacata, e
um alto-falante instalado na capota de um velho ford
	corcel anuncia
(com pesar) que dona neusa, a neusa do banco do brasil,
morreu na noite passada; que o corpo está sendo velado no
	salão paroquial
da igreja de são miguel arcanjo; que o cortejo fúnebre sairá
	de lá, às onze
e meia da manhã, para o enterro no cemitério municipal.

não conheci a dona neusa do banco do brasil. eu nem moro aqui,
estou de passagem. o som do alto-falante vai sumindo no fim
	da rua, prestes
a dobrar a esquina. eu olho
para o alto: no céu, o sol, indiferente a isso tudo, brinca
de esconde-esconde
com meia-dúzia
de nuvens.

      São Bento do Sapucaí, janeiro de 2020



36. a poesia que há

a poesia que há no que a pele sente quando sente
que há nela outra pele,
encostando, os corpos, a calidez, as pernas
entrelaçadas, mamilos entre dedos que apertam
com força, a respiração. o cabelo, ora
solto, ora preso em coque, deixando ver, por inteiro,
o pescoço. e a poesia que há nos pequenos lábios, e
nos grandes. a respiração, a transpiração.

depois, o torpor. e a pele, cansada. a certeza
de que só a poesia redimirá nossos pecados
(que são muitos),
		         de que só a poesia nos poderá salvar.



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Carlos Machado, 2023



André Caramuru Aubert
      in A poesia que há
      Rizoma, Itajaí-SC, 2023
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* Cesário Verde, “O Sentimento dum Ocidental” (1880)
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* Imagens: quadros do pintor russo Evgeniy Monahov (1974-)