Número 525 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 6 de março de 2024

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«Vamos, todos, brincar de cacto / na areia da nossa tristeza.» (Cassiano Ricardo) *

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Seis poetas
Manuel Bandeira, Solano Trindade, Florisvaldo Mattos, Ruy Proença, Sônia Barros, Carlos Drummond de Andrade


Amigas e amigos,

Embora há muito tempo boa parte dos brasileiros não tenha contato com ferrovias, acredito que o trem constitui o meio de transporte mais associado às expansões líricas, na música popular e também na poesia.

Mesmo o brasileiro que nunca embarcou num trem com certeza já cantou ou apreciou canções como “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa; “Trem de Ferro”, de Antonio Carlos Jobim sobre poema de Manuel Bandeira; “Trem azul”, de Lô Borges e Ronaldo Bastos; ou mesmo o xote de Helena Gonzaga e João do Valle (na verdade, Luiz Gonzaga e João do Vale), “De Teresina a São Luís”, interpretado por Luiz Gonzaga.

Talvez haja mais dezenas de canções inspiradas nos trens. Cito, por exemplo, mais duas: “Trem das Sete”, de Raul Seixas, e “O Trem Atrasou”, samba de Arthur Vilarinho, Estanislau Silva Pinto e Paquito, lançado em 1941. Embora eu me empolgue com todas essas músicas, confesso que minha canção ferroviária preferida é a saudosa e doída “Ponta de Areia”, de Milton Nascimento e Fernando Brant: “Maria-fumaça não canta mais / Para moças, flores, janelas e quintais / Na praça vazia um grito, um ai / Casas essquecidas, viúvas nos portais”.

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Assim como a canção popular, a poesia também trafega pelas ferrovias. Há muito tempo pensei em fazer um boletim focado nesse meio de transporte. Demorei, mas embarco agora. Apresento a seguir uma pequena seleção de poemas ferroviários, envolvendo os seguintes poetas: Manuel Bandeira; Solano Trindade; Florisvaldo Mattos; Ruy Proença; Sônia Barros; e Carlos Drummond de Andrade.

Em alguns casos, os próprios poemas — como os de Bandeira e Solano Trindade — foram depois musicados. Assim, incluirei a música junto ao poema. Os poemas não transformados em música também formarão duplas com canções não associadas a eles.

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Vamos aos poemas. Para começar, “Trem de Ferro”, poema de Manuel Bandeira musicado pelo maestro Antonio Carlos Jobim. Publicado originalmente no livro Estrela da Manhã (1936), o poema foi registrado como canção no álbum “Antonio Brasileiro”, de Jobim (Sony Music, 1994).

No poema, um clássico modernista, Bandeira captura o ritmo de um trem de ferro, a começar pela onomatopeia “Café com pão / Café com pão / Café com pão”. Na sequência, os versos, sempre curtos, acompanham a velocidade do comboio, que atravessa uma região nordestina.

Num texto em que fala sobre o trabalho de musicar o poema, Jobim declarou: “Aquilo é uma coisa muito musical. O original já tem música!”. E repete, como quem canta: “Café com pão é muito bom! Café com pão é muito bom!” (Jobim, em Três Antônios e um Jobim, livro organizado por Marília Martins e Paulo Roberto Abrantes. Rio de Janeiro, Dumará, 1993).

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O próximo poema ferroviário é “Tem gente com fome”, do poeta e ativista negro pernambucano Solano Trindade (1908-1984). Publicado em 1944, no volume Poemas de uma Vida Simples, o texto dá voz ao trem da Estrada de Ferro Leopoldina, que vai pelo caminho denunciando as precárias condições de vida dos subúrbios cariocas.

João Ricardo, líder do grupo Secos & Molhados, transformou o poema numa letra de rock, gravado por Ney Matogrosso em 1979. Trinta e cinco anos depois de publicado em livro, o grito do trem ainda fazia sentido. E, infelizmente, ainda faz agora, oitenta anos depois.

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Vem a seguir o poema “Velhas Estações de Trem”, do poeta baiano Florisvaldo Mattos (Uruçuca, 1932). Trata-se de um soneto no qual o autor deplora o abandono das estações ferroviárias e lembra os tempos da ferrovia e de sua mocidade. “Ó trilhos despertados na saudade, / curvas que a mão dos anos enferruja!”.

Neste soneto, o poeta revela a poesia das velhas estradas de ferro que o Brasil, com os olhos tapados por interesses automobilísticos, entregou à ferrugem do tempo. Mas o eu poético insiste: “Ainda vejo passar o maquinista, / o guarda-freios, lépido, o foguista, / a me acender a lenha da memória”.

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O poema “Solidários”, do paulistano Ruy Proença (1957), destaca um aspecto não exatamente lírico dos trens urbanos: o excesso de passageiros, o aperto dentro dos vagões. “Entro / sob pressão”, desabafa o narrador, que revela estar “nadando / em mar / de carne”.

Este poema integra o livro Caçambas (2015), no qual o autor inclui outros textos sobre a convivência de viajantes em trens urbanos e outras aventuras nas ruas de São Paulo.

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Prossegue nossa viagem de trem. Agora chegamos ao “Fim da Linha”, da poeta paulista Sônia Barros (Monte Mor, 1968). Nos poemas anteriores, as locomotivas e suas estações eram referências concretas. Neste texto de Sônia Barros, a ferrovia parece representar apenas uma metáfora, algo associado à memória do eu poético.

O poema começa afirmando: “O trem desapareceu, / nunca mais foi visto”. Apesar disso, a locomotiva retorna pesadamente ao narrador, que confessa sentir-se como quem “carrega uma estação / de trem por dentro”.

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Embora a última estação poética que visitamos se chame “Fim da Linha”, a viagem ainda não terminou. Vem aí, para fechar com chave de ouro — na verdade, com um comboio duplamente de ferro —, o poema “O Maior Trem do Mundo”, assinado por Carlos Drummond de Andrade.

Neste poema publicado em 1984 no jornal O Cometa Itabirano, Drummond discorre sobre a devastação da paisagem de sua cidade natal, promovida pela mineração. “O maior trem do mundo” carrega tudo: “Leva meu tempo, minha infância, minha vida / triturada em 163 vagões de minério e destruição”. Arrasado, o poeta declara que o trem também leva embora seu “coração itabirano”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Poesia sobre trilhos

• Manuel Bandeira   • Solano Trindade
• Florisvaldo Mattos   • Ruy Proença
• Sônia Barros
• Carlos Drummond de Andrade


              




Tom Jobim, com Olívia Hime e coro, canta a música de Jobim para o poema "Trem de Ferro", de Manuel Bandeira


• Manuel Bandeira

TREM DE FERRO

Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!

Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...




Ney Matogrosso, Tem Gente com Fome (1979). Música de João Ricardo sobre poema de Solano Trindade


• Solano Trindade

TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo
Parece dizer:
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Tem gente com fome...

Piiiii!

Estação de Caxias
De novo a correr
De novo a dizer:
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Tem gente com fome...

Vigário Geral
Lucas, Cordovil
Braz de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria, Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá

Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo
Parece dizer:
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Tem gente com fome...

Tantas caras tristes
Querendo chegar
Em algum destino
Em algum lugar...

Só nas estações
Quando vai parando
Lentamente
Começa a dizer
Se tem gente com fome
Dá de comer
Se tem gente com fome
Dá de comer
Se tem gente com fome
Dá de comer

Mas o freio de ar
Todo autoritário
Manda o trem calar:
Psiuuuuuuuuuu...

      Este poema, no livro, é ligeiramente diferente da letra musicada.





Diana Pequeno, Trem do Pantanal. Canção de Geraldo Roca e Paulo Simões


• Florisvaldo Mattos

VELHAS ESTAÇÕES DE TREM

Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas
no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.
Ó trilhos dispersados na saudade,
curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.
Ainda vejo passar o maquinista,
o guarda-freios, lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.
Elas contam um tanto desta história,
a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.




Tribo de Jah, De Teresina a São Luís. Composição de Helena Gonzaga e João do Vale


• Ruy Proença

SOLIDÁRIOS

entro no trem
nadando
em mar
de carne

(carne: matéria
resistente
escorada
em barras
de ossos)

entro
sob pressão

amalgamando-me
tecido contra
tecido
à massa
compacta

sem saber
se ainda tenho
braço perna

se os pés
tocam
o chão

sem saber
se ainda sou eu

os olhos voltados
para o teto
da composição




Milton Nascimento, Ponta de Areia, composição dele com letra de Fernando Brant.


• Sônia Barros

FIM DA LINHA

O trem desapareceu,
nunca mais foi visto,
           só o apito percorre
           o trilho do ouvido,
vai e vem intermitente,
agulha a cerzir espaços,
           esgarçados lodaçais
           do esquecimento:
o ontem ressurgindo
no ritmo de espasmos,
           luz cortando sombras
           no túnel do pensamento,
ouvido inconsciente
de quem até hoje sente
           e carrega uma estação
           de trem por dentro.




Zeca Pagodinho, Trem das Onze, clássico de Adoniran Barbosa, gravado originalmente em 1964.


• Carlos Drummond de Andrade

O MAIOR TREM DO MUNDO

O maior trem do mundo
leva minha terra
para a Alemanha
leva minha terra
para o Canadá
leva minha terra
para o Japão.

O maior trem do mundo
puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
engatadas geminadas desembestadas
leva meu tempo, minha infância, minha vida
triturada em 163 vagões de minério e destruição.

O maior trem do mundo
transporta a coisa mínima do mundo,
meu coração itabirano.

Lá vai o trem maior do mundo
vai serpenteando vai sumindo
e um dia, eu sei, não voltará
pois nem terra nem coração existem mais.




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Carlos Machado, 2024



• Manuel Bandeira
   “Trem de Ferro”
   in Estrela da Vida Inteira
   José Olympio, Rio de Janeiro, 1976
• Solano Trindade
   “Tem Gente com Fome”
   in Poemas Antológicos
   Nova Alexandria, São Paulo, 2008
• Florisvaldo Mattos
   “Velhas Estações de Trem”
   in Estuário dos Dias e Outros Poemas
   Organização e ilustração Fernando Oberlaender
   EPP (Caramurê), Salvador, 2016
• Ruy Proença
   “Solidários”
   in Caçambas
   Editora 34, São Paulo, 2015
• Sônia Barros
   “Fim da Linha”
   in Fios
   Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2014
• Carlos Drummond de Andrade
   “O Maior Trem do Mundo”
   in jornal O Cometa Itabirano n. 69, agosto 1984
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* Cassiano Ricardo, "O Cacto",
 in João Torto e a Fábula (1954)