Amigas e amigos,
Embora há muito tempo boa parte dos brasileiros não tenha contato com ferrovias, acredito que o trem constitui o meio de transporte mais
associado às expansões líricas, na música popular e também na poesia.
Mesmo o brasileiro que nunca embarcou num trem com certeza já cantou ou apreciou canções como “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa;
“Trem de Ferro”, de Antonio Carlos Jobim sobre poema de Manuel Bandeira; “Trem azul”, de Lô Borges e Ronaldo Bastos; ou mesmo o xote
de Helena Gonzaga e João do Valle (na verdade, Luiz Gonzaga e João do Vale), “De Teresina a São Luís”, interpretado por Luiz Gonzaga.
Talvez haja mais dezenas de canções inspiradas nos trens. Cito, por exemplo, mais duas: “Trem das Sete”, de Raul Seixas, e
“O Trem Atrasou”, samba de Arthur Vilarinho, Estanislau Silva Pinto e Paquito, lançado em 1941. Embora eu me empolgue com todas
essas músicas, confesso que minha canção ferroviária preferida é a saudosa e doída “Ponta de Areia”, de Milton Nascimento e
Fernando Brant: “Maria-fumaça não canta mais / Para moças, flores, janelas e quintais / Na praça vazia um grito, um ai /
Casas essquecidas, viúvas nos portais”.
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Assim como a canção popular, a poesia também trafega pelas ferrovias. Há muito tempo pensei em fazer um boletim focado nesse meio
de transporte. Demorei, mas embarco agora. Apresento a seguir uma pequena seleção de poemas ferroviários, envolvendo os seguintes
poetas: Manuel Bandeira; Solano Trindade; Florisvaldo Mattos; Ruy Proença; Sônia Barros;
e Carlos Drummond de Andrade.
Em alguns casos, os próprios poemas — como os de Bandeira e Solano Trindade — foram depois musicados. Assim, incluirei a música
junto ao poema. Os poemas não transformados em música também formarão duplas com canções não associadas a eles.
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Vamos aos poemas. Para começar, “Trem de Ferro”, poema de Manuel Bandeira musicado pelo maestro Antonio Carlos Jobim.
Publicado originalmente no livro Estrela da Manhã (1936), o poema foi registrado como canção no álbum “Antonio Brasileiro”,
de Jobim (Sony Music, 1994).
No poema, um clássico modernista, Bandeira captura o ritmo de um trem de ferro, a começar pela onomatopeia “Café com pão /
Café com pão / Café com pão”. Na sequência, os versos, sempre curtos, acompanham a velocidade do comboio, que atravessa uma
região nordestina.
Num texto em que fala sobre o trabalho de musicar o poema, Jobim declarou: “Aquilo é uma coisa muito musical. O original
já tem música!”. E repete, como quem canta: “Café com pão é muito bom! Café com pão é muito bom!” (Jobim, em
Três Antônios e um Jobim, livro organizado por Marília Martins e Paulo Roberto Abrantes. Rio de Janeiro, Dumará, 1993).
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O próximo poema ferroviário é “Tem gente com fome”, do poeta e ativista negro pernambucano Solano Trindade (1908-1984).
Publicado em 1944, no volume Poemas de uma Vida Simples, o texto dá voz ao trem da Estrada de Ferro Leopoldina, que vai
pelo caminho denunciando as precárias condições de vida dos subúrbios cariocas.
João Ricardo, líder do grupo Secos & Molhados, transformou o poema numa letra de rock, gravado por Ney Matogrosso em 1979.
Trinta e cinco anos depois de publicado em livro, o grito do trem ainda fazia sentido. E, infelizmente, ainda faz agora, oitenta
anos depois.
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Vem a seguir o poema “Velhas Estações de Trem”, do poeta baiano Florisvaldo Mattos (Uruçuca, 1932). Trata-se de um soneto
no qual o autor deplora o abandono das estações ferroviárias e lembra os tempos da ferrovia e de sua mocidade. “Ó trilhos
despertados na saudade, / curvas que a mão dos anos enferruja!”.
Neste soneto, o poeta revela a poesia das velhas estradas de ferro que o Brasil, com os olhos tapados por interesses automobilísticos,
entregou à ferrugem do tempo. Mas o eu poético insiste: “Ainda vejo passar o maquinista, / o guarda-freios, lépido, o foguista, /
a me acender a lenha da memória”.
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O poema “Solidários”, do paulistano Ruy Proença (1957), destaca um aspecto não exatamente lírico dos trens urbanos: o excesso
de passageiros, o aperto dentro dos vagões. “Entro / sob pressão”, desabafa o narrador, que revela estar “nadando / em mar / de carne”.
Este poema integra o livro Caçambas (2015), no qual o autor inclui outros textos sobre a convivência de viajantes em trens
urbanos e outras aventuras nas ruas de São Paulo.
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Prossegue nossa viagem de trem. Agora chegamos ao “Fim da Linha”, da poeta paulista Sônia Barros (Monte Mor, 1968).
Nos poemas anteriores, as locomotivas e suas estações eram referências concretas. Neste texto de Sônia Barros, a ferrovia
parece representar apenas uma metáfora, algo associado à memória do eu poético.
O poema começa afirmando: “O trem desapareceu, / nunca mais foi visto”. Apesar disso, a locomotiva retorna pesadamente ao narrador,
que confessa sentir-se como quem “carrega uma estação / de trem por dentro”.
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Embora a última estação poética que visitamos se chame “Fim da Linha”, a viagem ainda não terminou. Vem aí, para fechar com chave
de ouro — na verdade, com um comboio duplamente de ferro —, o poema “O Maior Trem do Mundo”, assinado por Carlos Drummond de Andrade.
Neste poema publicado em 1984 no jornal O Cometa Itabirano, Drummond discorre sobre a devastação da paisagem de sua cidade natal,
promovida pela mineração. “O maior trem do mundo” carrega tudo: “Leva meu tempo, minha infância, minha vida / triturada em 163 vagões
de minério e destruição”. Arrasado, o poeta declara que o trem também leva embora seu “coração itabirano”.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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