Número 527 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 3 de abril de 2024

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«Nenhum tempo é tempo / bastante para a ciência / de ver, rever.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Paulo Mendes Campos
Paulo Mendes Campos



Amigas e amigos,

Ativíssimo na imprensa como cronista e poeta nos anos 1960 e 1970, o mineiro Paulo Mendes Campos (1922-1991) era figura muito conhecida no país. Sua notoriedade vinha também do fato de ele ser um dos chamados Quatro Mineiros — grupo de amigos residentes no Rio de Janeiro, formado por Mendes Campos, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino.

Talvez o maior sucesso de Paulo Mendes Campos tenha sido seu livro O Amor Acaba – Crônicas líricas e existenciais, publicado postumamente em 1999. Contudo, o poeta (e também tradutor de poesia) anda meio esquecido. Por isso andei relendo alguns livros dele e extraí de lá os poemas da seleção ao lado. Para ser mais exato, os textos vieram dos livros Poemas de Paulo Mendes Campos e Transumanas, ambos de 1979.

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Vamos à leitura. O primeiro poema, “Os Domingos”, traça o retrato de um domingo perfeito, pelo menos para a “alma” do narrador: “(...) a tarde transparente, / Os vidros fáceis das horas preguiçosas, / Adolescência das cores, preciosas andorinhas”. Muito bem. Mas então entra em cena a memória e o eu poético se perde num emaranhado de lembranças. O domingo se torna uma coisa extremamente lírica, cheia de “doçuras geométricas”, poemas nos parques e desilusões. Um quadro bucólico e melancólico.

O texto a seguir é “Neste Soneto”, um poema de amor, que começa com uma homenagem ao inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, o autor de Marília de Dirceu. “Neste soneto, meu amor, eu digo, / Um pouco à moda de Tomás Gonzaga, / Que muita coisa bela o verso indaga / Mas poucos belos versos eu consigo”.

“Três Coisas” é o próximo poema. Aqui, o poeta se põe a discorrer sobre três entidades mais ou menos abstratas e difíceis de definir: o tempo, a morte e o olhar da mulher amada. “O tempo, quando é que cessa? / A morte, quando começa? / Teu olhar, quando se expressa?”

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O tempo, mais uma vez, comparece como motivo, agora para o poema “Definição”. O poeta começa elencando coisas que, em sua visão, o tempo não é: “Não é pesado nem leve / Não é alto nem rasteiro / Não é longo nem é breve”. Mas, afinal, o que é o tempo? O poeta responde de uma forma que não admite contestação, porque se trata de definições absolutamente pessoais: “O tempo é meu alimento / Meu vestido, meu espaço / Meu olhar, meu pensamento”.

Vêm, por fim, dois poemas bem curtos: “Chesterton” e “Ecologia”. No primeiro, um intrigante diálogo entre um passageiro e um vendedor de passagens numa estação de trem. No outro, um alerta ecológico. As praias já começavam a ficar poluídas.

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Nascido em Belo Horizonte em 1922, Paulo Mendes Campos concluiu o curso secundário em 1939, em São João del-Rei. Depois, ingressou nos cursos de odontologia, veterinária e direito, mas não concluiu nenhum deles. Como costumava brincar, diploma mesmo ele só teve o de datilografia.

E é como “datilógrafo” que ele se envolve com a literatura e o jornalismo, áreas em que fincou raízes. Em 1945 vai para o Rio de Janeiro, onde formaria o famoso grupo dos Quatro Mineiros, junto com Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. Mendes Campos traduziu prosa e poesia e colaborou em jornais, como o Correio da Manhã, Diário Carioca, e a revista Manchete.

Publicou, em vida, oito livros de crônicas. Em poesia, estreou em 1951, com o volume A Palavra Escrita. Seu livro O Domingo Azul do Mar, de 1958, ganhou certa notoriedade e foi reeditado em 1966, com o título Testamento do Brasil e Domingo Azul do Mar. Paulo Mendes Campos faleceu em 1991.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Doçuras geométricas


• Paulo Mendes Campos


              

Slava Fokk - black.swan2-2018
Slava Fokk, pintor russo, Cisne negro (2018)


OS DOMINGOS

Todas as funções da alma estão perfeitas neste domingo.
O tempo inunda a sala, os quadros, a fruteira.
Não há um crédito desmedido de esperança
Nem a verdade dos supremos desconsolos —
Simplesmente a tarde transparente,
Os vidros fáceis das horas preguiçosas,
Adolescência das cores, preciosas andorinhas.

Na tarde — lembro — uma árvore parada,
A alma caminhava para os montes,
Onde o verde das distâncias invencidas
Inventava o mistério de morrer pela beleza.
Domingo — lembro — era o instante das pausas,
O pouso dos tristes, o porto do insofrido.
Na tarde, uma valsa; na ponte, um trem de carga;
No mar, a desilusão dos que longe se buscaram;
No declive da encosta, onde a vista não vai,
Os laranjais de infindáveis doçuras geométricas;
Na alma, os azuis dos que se afastam,
O cristal intocado, a rosa que destoa.
Dos meus domingos sempre fiz um claustro.
As pétalas caíam no dorso das campinas,
A noite aclarava os sofrimentos,
As crianças nasciam, os mortos se esqueciam mortos,
Os ásperos se calavam, os suicidas se matavam.
Eu, prisioneiro, lia poemas nos parques,
Procurando palavras que espelhassem os domingos.
E uma esperança que não tenho.


NESTE SONETO

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.
Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no meu peito vive o verso certo.
Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto
Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.


Slava Fokk- girl.with.toucan-2016
Slava Fokk, Moça com tucano (2016)


TRÊS COISAS

Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido
Não consigo medir
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo, quando é que cessa?
A morte, quando começa?
Teu olhar, quando se expressa?

Muito medo tenho
Do tempo
Da morte
De teu olhar

O tempo levanta o muro.
A morte será o escuro?
Em teu olhar me procuro.


DEFINIÇÃO

O tempo não é a fonte
Jorrando dois jatos d'água
De uma carranca bifronte

Não é pesado nem leve
Não é alto nem rasteiro
Não é longo nem é breve

Nem tampouco o passadiço
Suspenso entre dois vazios
Como frágil compromisso

O tempo é meu alimento
Meu vestido, meu espaço
Meu olhar, meu pensamento.


Slava Fokk- white.lily-2015
Slava Fokk, Lírio branco (2015)


CHESTERTON

Perguntei ao homem da bilheteria
pra onde ia o próximo trem.
Ao que ele respondeu com afetação:
“Para onde deseja ir?”
E eu respondi
com profundidade e filosofia:
"Para onde for o próximo trem".


ECOLOGIA

Não vou mais ao banho de mar:
quem está precisando de um banho
é o mar.




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Carlos Machado, 2024



Paulo Mendes Campos
      • “Os domingos”, “Neste soneto”, “Três coisas”, “Definição”
      in Poemas de Paulo Mendes Campos
      Civilização Brasileira/INL-MEC, Rio de Janeiro, 1979

      • “Chesterton”, “Ecologia”
      in Transumanas
      Codecri, Rio de Janeiro, 1979

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* Carlos Drummond de Andrade, "Qualquer tempo", in A Falta que Ama (1968)
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* Imagens: quadros do pintor russo Slava Fokk (1976-)