Número 528 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 24 de abril de 2024

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«A sombra do berço traça na parede / uma gaiola enorme.» (Elizabeth Bishop) *

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Patrícia Claudine Hoffmann
Patrícia Claudine Hoffmann



Amigas e amigos,

A poeta paulista-catarinense Patrícia Claudine Hoffmann (São Paulo-SP, 1975) já é conhecida dos leitores deste boletim. Esteve aqui nas edições 384 (2017) e 340 (2015) e retorna agora, após o lançamento de dois novos livros: Oratórios d’Água (2021) e A Sombra Azul do Minotauro (2023), ambos publicados pela Editora Patuá.

Nas coletâneas anteriores de Patrícia Hoffmann, destaquei a persistente busca existencial que marca o trabalho da autora. Assinalei também as ricas e desnorteantes metáforas encontradas em seus versos. Agora, nos dois livros mais recentes, observo uma sutil mas importante mudança na criação poética da autora.

Patrícia Hoffmann aproxima-se, cada vez mais, da estética surrealista. Suas metáforas, mais numerosas, criam múltiplas surpresas para o leitor. Mal se tenta alcançar o sentido de uma frase, logo vem outra ainda mais estonteante.

Aparentemente, não sou o único a fazer essas observações. O volume A Sombra Azul do Minotauro é prefaciado pelo poeta e tradutor Cláudio Willer (1940-2023), uma das vozes mais representativas do surrealismo no Brasil. Diz Willer, logo no início de seu texto: “Há imagens poéticas paradoxais, que, para alguns, talvez sejam enigmas”. Mais adiante, o prefaciador considera que a poeta usa seu “aparente hermetismo” para expressar sua inconformidade com o que há de errado neste mundo.

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Para esta edição, selecionei três poemas de A Sombra Azul do Minotauro e mais dois de Oratórios d’Água. O poema “Onze e Onze” mostra bem a pujança de metáforas que são a marca da poesia de Patrícia Claudine Hoffmann.

“É sempre a / mesma hora / no relógio da aura, / na ponte dos ponteiros / mesopotâmicos / das carruagens de guerra, / e rangem no bronze coagulado / de cinza”. Como se vê, o leitor trafega, extasiado — e perigosamente —, de um relógio impreciso para uma ponte encravada no fundo da História, entre móbiles de guerra e metais cinzentos. Extenuante viagem, apenas na primeira estrofe. E não se pense que no final haverá trégua, e tudo se descortinará num espelho claro. Os últimos versos não autorizam essa risonha expectativa. Neles, eu poético avisa: “Estou na metade / do aço. // Em suaves desespelhos”.

O próximo poema, “Movimentos do Infinito em Pina Bausch”, é uma homenagem à dançarina e diretora de balé alemã Pina Bausch (1940-2009). Selecionei este poema (e também os dois seguintes) com a intenção de oferecer ao leitor, já de saída, um ponto concreto de referência. “Palavra, corpo da alma. / Escolta. Desenho no ar. / A vapor. Amor. / Respiradouro do poema.” Neste trecho, podemos, sem ânsia, ancorar as ideias nos movimentos do corpo e na dança de Pina Bausch.

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O próximo poema é “Telefonema para Estamira, Além do Além”. Aqui, a homenageada é Estamira Gomes de Sousa (1941-2011), mulher que se tornou conhecida por meio do documentário Estamira (2005), dirigido por Marcos Prado e produzido por José Padilha, diretor de Tropa de Elite. Estamira foi uma senhora que apresentava distúrbios mentais e trabalhava num aterro sanitário no Rio de Janeiro. Tinha um discurso filosófico, no qual entremeava lucidez e loucura.

No poema, a pessoa que telefona a Estamira declara: “Tenho que cuidar de ti / através de mim, agora, / na linhagem”. Essa aproximação e esse cuidado é que autorizam a estranha sintaxe na última quadra do poema: “Tu me acenas do cometa, / e eu daqui, do aquário terreno, / te mantenho-me de poesia, / nosso elo secreto”. Observem bem: “te mantenho-me de poesia, / nosso elo secreto”.

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Os dois últimos poemas desta miniantologia vêm do livro Oratórios d’Água. Os dois têm em comum um traço diferente: o título, na verdade, corresponde ao primeiro verso. Conforme observei no início deste comentário, nesse livro (e nestes dois poemas) já se percebe o aprofundamento das imagens surrealistas.

Em “Metáfora e Cânfora”, destaca-se a singularidade dos ritmos obtidos com palavras esdrúxulas, a começar por aquelas do título. “Metáfora e cânfora”, “cânticos vulcânicos”, “cálculo do pânico”.

No último poema, “Dos labirintos”, o clima é também de estranheza. “Dos labirintos / salvarei somente a pedra / marinha /que for indecisa de eternidade”. No final, o eu poético admite que está “em busca da palavra leve, / lavada por dentro do que, voltando, / já nos devolve o que nos deve / de ir emboras”.

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Nascida em São Paulo-SP em 1975, a poeta Patrícia Claudine Hoffmann transferiu-se para Santa Catarina desde os seis anos de idade. Formada em letras, trabalha como professora de língua portuguesa.

A poeta estreou com a coletânea Água Confessa, em 2001. Entre seus livros encontram-se A Sombra Azul do Minotauro (Patuá, 2023); Oratórios d'Água (Patuá, 2021); Feito Vértebras de Colibris (2017, Marianas); Matadouro Imperfeito (2016, Letradágua); e Sete Silêncios (2004).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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A sombra azul do minotauro

• Patrícia Claudine Hoffmann


              



Tatiana Bianchini - colagem
Tatiana Bianchini, artista paulistana, Colagem


ONZE E ONZE

É sempre a
mesma hora
no relógio da aura,
na ponte dos ponteiros
mesopotâmicos
das carruagens de guerra,
e rangem no bronze coagulado
de cinza.

São onze e onze,
da noite ou do dia,
ainda,
no horizonte em sincronia
crônica.

Minha vó sempre me benzia de quebranto.

É uma e onze. É novembro na vida.
Estabilizo as linhas da palma com esse aviso,
num transe despertador intermitente:
— Para onde nos chamam?
— De onde nos acenam essa hora?

Desde que nasci é dia onze.
O dia dos ausentes.

Antes que me perguntem,
não sei de nenhum cinza azul-calcário,
nem da mancha que divide o mar
em dois números.

Sabia era dos oceanários,
quando os tinha,
em miniatura, mas não eram onze,
nuns vidros esverdeados,
fincados nas mãos gêmeas,
efêmeras, da infância.

Sabia era desses cavalos duplos,
até ontem orvalhados no estuário
em febre,

até que o sono se abrisse
em tosse, sob os sudários
daquelas aldeias milenares,
onde não precisei
nunca mais voltar de prece.

Porque o comprimido das horas
mudou de insônia
aqueles dias enfermos
e os termos das fraturas...
nas fugas desastradas de si mesmo,
pelas estradas
de nossa pouca procura,
preclara e descrente,
de ser apenas mais um dardo
para os alvos luminosos de Deus
— tão mais que onze. —

Frequento a marginal do último rio,
com os olhos entupidos de espanto,
dessas visagens instantâneas.

Não serei mais espontânea
de feridas e mares abertos.

Não serei mais do que possa
o serenar de cada nervo
no verso.

Escrevo de cima para a ponte.
Em labirinto.

Estou na metade
do aço.

Em suaves desespelhos.



Tatiana Bianchini - colagem
Tatiana Bianchini, Colagem


MOVIMENTOS DO INFINITO EM PINA BAUSCH

Corpo e meio a palavra alma.
Alma e volta.

Volta e meia a palavra encorpa
e para. E corta.

Palavra, corpo da alma.
Escolta. Desenho no ar.
A vapor. Amor.
Respiradouro do poema.

Procissão.
Ouro. Água.

Touro. Tarot dos poros.
Costelas ímãs do salto.
Constelação de Órion.

Epifania. Axioma do voo.
Galáxia e fluxo.

Detectam movimentos
na aura da eternidade
entreaberta.

TELEFONEMA PARA ESTAMIRA, ALÉM DO ALÉM

           Eu não sou como vocês
           que são apenas robôs sanguíneos.

               Estamira Gomes de Sousa


As palavras são sempre sãs de memória,
se o sentimento é puro,
me disseste ao telefone,
na última vez
em que nos falamos de sonho.

Senti teus sobrenomes
nas ondas do mar hoje,
porque não sei o que escrever
quando estás em todos os lugares
com os olhos da menina
que não dorme de viagem.

E eu te vejo
de ancestral depoimento.

Tenho que cuidar de ti
através de mim, agora,
na linhagem.

Em teu sorriso percorro
a sanidade das coisas indefesas,
mas a aura não é indefesa, disseste,
pois não gritei de detritos o peito,
antes,
nem reciclei a palavra do coração,
para que esta alcançasse a tua natureza superior,
além do além.

E a firmeza dos afetos, Estamira,
cada vez mais atemporal, me sobrevém,
de tudo o que existe
porque é imaginário,
é e tem.

Tu me acenas do cometa,
e eu daqui, do aquário terreno,
te mantenho-me de poesia,
nosso elo secreto.



Tatiana Bianchini - colagem
Tatiana Bianchini, Colagem


METÁFORA E CÂNFORA

preservadas para a respiração
nos conflitos,

se não rastejarmos de infinitos
cânticos vulcânicos.

Famintos de oráculos e castiçais.
Atlânticos castigos. Ancestrais.
Pátrios. Ambíguos.

Farei o cálculo do pânico contigo,
mas em continentes outros.

Bem distintos.

DOS LABIRINTOS

salvarei somente a pedra
marinha
que for indecisa de eternidade.

Cuidarei dos perdões do espanto,
de hora em hora, de ira em ira...
em relógios tijolares de escombros,

ao todo que se revira na cara dos corpos...
na cara das almas em ilha.

Um acalanto desses que ampare as auras,
um alívio que não seja breve.

Em busca da palavra leve,
lavada por dentro do que, voltando,
já nos devolve o que nos deve
de ir emboras.




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Carlos Machado, 2024



 Patrícia Claudine Hoffmann

   • “Onze e Onze”, “Movimentos do Infinito em Pina Bausch”,
   “Telefonema para Estamira, Além do Além”
   in A Sombra Azul do Minotauro
   Editora Patuá, São Paulo, 2023

   • “Metáfora e Cânfora”, “Dos Labirintos”
   in Oratórios d’Água
   Editora Patuá, São Paulo, 2021
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* Elizabeth Bishop, "Canções para uma cantora de cor",
 in Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop,
 trad. Paulo Henriques Britto
______________
* Imagens: colagens da artista paulistana Tatiana Bianchini (1975-)