Ledusha B. A. Spinardi
Caros amigos,
Paulista de Assis, da classe de 1953, Leda Beatriz Abreu Spinardi, ou Ledusha
B.A. Spinardi, considera-se uma alma carioca. Preferia ter nascido no Rio, onde
viveu durante anos e publicou seu livro de estréia, Risco no Disco, de
1981. Apesar disso, mora em São Paulo, onde traduz livros e escreve poesia.
Poeta com acento pop, Ledusha é identificada com os autores da chamada poesia
marginal carioca, dos anos 70 e 80. Poemas dela foram musicados por gente do
rock como Lobão e Cazuza, do pop mais recente, como Bebel Gilberto e Fernanda
Porto, e também por emepebistas do porte de Francis Hime.
O segundo livro de Ledusha, Finesse e Fissura, saiu em 1984. Depois
disso, ela já publicou duas outras coletâneas: 40 Graus (1990) e
Exercícios de Levitação (2002). Este título mais recente resultou de
uma coluna de poemas, quase sempre em prosa, que a escritora manteve no jornal
Folha de S. Paulo, entre 1996 e 2000. Reescritos e depurados, viraram
livro. Com exceção do poema "Olhando as Ilhas", que é de 40 Graus, todos
os textos ao lado foram extraídos de Exercícios de Levitação.
Coerentes com sua origem jornalística, os poemas enveredam, quase sempre, pela
crônica poética. É o caso de "Rombos" e "Há". Ambos lançam mão de enumerações
para fazer pequenos levantamentos de tipos humanos — o primeiro de mulheres; o
outro, de homens.
Em "Cena Íntima" e "Retorno", paisagens externas se fundem a estados de
alma da poeta para traçar instantes de encantamento ou de reflexão. Em todos os
textos percebe-se o olhar penetrante de uma mulher. Às vezes, isso aparece de
forma muito explícita, como em "Olhando as Ilhas" ou em "Veleiros Brancos". Em
outros casos, a presença desse olhar é mais discreta, mas tenho a impressão de
que ele é um dos eixos de toda a obra de Ledusha.
Abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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CANÇÕES INFANTIS DE
JOSÉ PAULO PAES E MADAN
Se você tem crianças – filhos, netos, sobrinhos ou aquela velha criaturinha
dentro de si –, dê uma escutada no CD Brincando com Palavras. O disco,
que está saindo pela gravadora independente
Lua Music, traz
poemas infantis de José Paulo Paes musicados pelo cantor e compositor paulista
Madan. Do pouco que conheço nessa área, creio que
José Paulo Paes (1926-1998) é o autor brasileiro que produziu a mais
criativa poesia para crianças desde o já clássico Ou Isso ou Aquilo, de
Cecília Meireles (1901-1964).
As melodias de Madan conseguem captar com perfeição o espírito lúdico dos
textos. Na canção “O Bife”, alguém sai em busca de um bife desaparecido: “Sendo
bife a cavalo / Fugiu no galope / Não vou mais achá-lo”. Há também a ecológica
"Raridade", que tem como refrão: "E se o homem não pára / De caçar arara / Hoje
uma ave rara / Ou a arara some / Ou então muda seu nome / Para arrara". Por fim,
vem o divertido “Gato da China”, cujo poema faço questão de transcrever na
íntegra:
GATO DA CHINA
Era uma vez
Um gato chinês
Que morava em Xangai
Sem mãe e sem pai
Que sorria amarelo
Para o Rio Amarelo
Com seus olhos puxados
Um pra cada lado
Era um gato mais preto
Que tinta nanquim
De bigodes compridos
Feito um mandarim
Que quando espirrava
Só fazia “chin!”
Era um gato esquisito
Comia com palitos
E quando tinha fome
Miava “ming-au!”
Mas lambia o mingau
Com sua língua de pau
Não era um bicho mau
Esse gato chinês
Era até legal
Quer que eu conte outra vez?
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Veleiros brancos
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Ledusha B. A. Spinardi |
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OLHANDO AS ILHAS
a primeira nuvem fosca nos olhos
a primeira alegria talhada no vácuo
o namorado esteta que chorava à toa
o atlas que homem nenhum me deu
PRECE DE UM DIA QUASE
IGUAL A TODOS
Deus dos delicados, não me abandone nessa guerra insana. Minha máquina de ser
beira a pane enquanto o veludo da voz de Billie lambe as paredes do lusco-fusco.
Abençoe, senhor, tudo que dói em nós, indispensável. As tardes despenteadas em
Grumari, as lágrimas do homem que me amou e nunca disse, o negro agonizante sob
o sol narcísico de Ipanema, as crianças que tão cedo me deixaram farta de
lágrimas e leite, o eco esquivo de Frederico, sinais de musgo. Abençoe as
escarpas da minha vida enquanto desenterro estas palavras — o carmim destas
palavras — com as lascas afiadas da dor. Sonho piscinas, atraída pelas
labaredas. Preciso dormir bem dentro das suas asas enormes, pai.
CENA ÍNTIMA
Outubro termina a bordo de um ventinho de cambraias, perfeito para cílios e
lábios. Ainda há borboletas soprando o véu da primavera. Do
outro lado da rua, através dos brincos-de-princesa na treliça que contorna a
varanda, posso sentir o coração de um sabiá pulsar ao
compasso solitário de um assobio. A luz da tarde anuncia subitamente escuros,
abafa-se, e logo a tempestade cai, despenteando o cenário com raios esplêndidos.
Cai estrondosa e se vai, deixando a tarde fresca e perfumada. Nos intervalos
entre gotas tardias, pesco um
sentimento ímpar de plenitude. Mosaicos de folhas e galhos repousam no asfalto
cravejado de granizos.
ROMBOS
La femme
n'existe pas. (J. Lacan)
Marta é tão delicada que escolheu deixar saudades. Lia comprou palmeiras e
depois cadê varanda? Virgínia engoliu parafusos, sentindo
a falta dos seus. Lídia aboliu o sexo e agora só vai de ópera e dieta à base de
aipo. Silvia trocará as cortinas e as próteses mamárias.
Dulce deixou a análise e mandou o fulaninho, de carrinho, enfim, às favas. Vilma
atravessa os domingos nadando em champanhe e ciúme.
Suzana amou sem reservas e casou-se com o bandido. Clarice fechou-se em copas
quando a mãe foi fazer ginástica. Paula se faz de artista,
mas é mesmo uma mimada. Sílvia ensaiou tanto o tapa que desmilingüiu-se em
beijos. Marilena era cretina, só mandava bem no
papo. Laís fez o que não pôde pra salvar o casamento. Eulália queimou suas
cartas mas guardou os envelopes. Clara sonha com Veneza enquanto devora
suspiros. Renata nem pensa em ter filhos, apesar do alto salário. Norma diz que
se mata caso o cachorro só lata. Rita rendeu-se ao gringo, agora que ficou
surda.
RETORNO
Gastei toda aquarela, recolhida. Silêncio de barcos acidentados, fruta madura
espatifando-se na terra. Colhi no ventre da treva estas
palavras tocando-as devagar, com medo de que por trás de suas faces frescas me
aguardasse uma emboscada. Sei pelo avesso suas formas
conturbadas, atormentam-me seus abismos híbridos. Vê-las pulsando salva-me da
lábia estofada cotidiana, mas também me expõe à rude dimensão da liberdade e seu
preço poucas vezes raso. Cintila a pedra noturna dos meus olhos nos seus olhos,
sei que posso atravessá-los num sopro. Após tantas águas fugidias, o refluxo. As
portas batem, como nos dias arejados.
VELEIROS BRANCOS
Alheia confiro a curva bem feita dos meus pés
minhas coxas que guardam o último sol
onde se encontram
A lua acena veleiros brancos
beijando a janela escancarada
Faz muito calor por aqui
faz calor nas dunas do meu corpo
que sei, pressentes
como pressinto a delicada febre das tuas mãos
No umbigo da noite destilo vapores
lavanda e mirra para que me queiras
tanto
e temas quase nada
No teu silêncio de homem
sinto que vislumbras minhas veredas
Assim permaneço recostada
os travesseiros de pluma afagando o dorso
e te quero dessa forma inescrutável
entre o tesão e a perplexidade.
HÁ
Os que só tragam com filtro. Os que conduzem a dança. Os de papo requentado. Os
que espalham o conflito. Os grosseiros de foulard. Os que fazem as cutículas. Os
que têm presas no olhar. Os prósperos despreparados. Os que vão lamber o limbo.
Os belos atormentados. Os previsíveis sem sal. Os ternos de abraço manso. Os que
usam o saber como arma de poder. Os que citam sem parar. Os que gostam de
mulheres. Os que gostam das mulheres. Os mitos desamparados. Vampiros por trás
de lentes. Os que só querem mamar. Os que portam falos bélicos. Os marinheiros
sem mar. Os que nos devolvem o riso. Sensíveis sem onde morar. Os que decifram.
Os que devoram.
Casados infantilizados. Os que consertam cadeiras. Os indeléveis carnais. Os de
coração falido. Raros sexys calados. Os gananciosos
banais. Marxistas que espancam mulheres. Os que se desmancham no ar.
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