Número 145 Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 30 de novembro de 2005

«Minha tristeza mede-se por léguas.» (Dante Milano)
 


    Fernando Pessoa


Caros amigos,


O boletim poesia.net n. 22, de 4/6/2003, trazia como título "Os outros Pessoas" e era dedicado aos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa. Por isso, na linha dedicada ao autor, lá estavam os nomes de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos —  os "outros Pessoas" do título.

Agora é a vez de Fernando Pessoa, ele mesmo, e o momento de homenageá-lo não foi escolhido de modo fortuito. Há exatos 70 anos, em 30 de novembro de 1935, falecia em Lisboa Fernando António Nogueira Pessoa, poeta único em sua multiplicidade. Na opinião de muitos, Pessoa integra a mais alta trindade de poetas da língua portuguesa, ao lado do quinhentista Luís Vaz de Camões e de nosso contemporâneo Carlos Drummond de Andrade.

Nascido em 1888 em Lisboa, Pessoa transferiu-se aos 7 anos para Durban, na África do Sul. Lá, freqüenta escolas de língua inglesa. Em 1905, volta definitivamente para Lisboa, a fim de matricular-se no curso superior de letras. Ensaísta, editor de revistas e panfletos literários, escreve poemas em inglês e em português. O conhecimento da língua inglesa valeu a Pessoa a possibilidade de tirar o sustento com o emprego de "correspondente estrangeiro" — ou seja, o sujeito que escreve cartas comerciais num escritório de importação e exportação.

Mas vamos à poesia. Além dos poetas soberbos que são
invenções de Pessoa o paganista Alberto Caeiro, o vanguardista Álvaro de Campos e o helenista Ricardo Reis —, há o Pessoa auto-assinado, que publicou um único livro em português, Mensagem, de 1934. O outro volume da poesia de Fernando de Pessoa é o Cancioneiro, publicado postumamente, assim como a reunião da obra dos heterônimos. Antes de 1934, tudo que dele se conheceu apareceu de forma esparsa em publicações literárias. Na pequena amostra do Pessoa, ele mesmo, reunida ao lado, extraí o poema "Horizonte" de Mensagem. Todos os outros textos são do Cancioneiro.

Para começar, este estupendo poema: "Hora absurda". Foi escrito em 1913, quando o poeta tinha apenas 25 anos. São versos muito longos, distribuídos em 25 quadras rimadas no padrão abab. Aí, Pessoa esbanja em ritmos, aliterações, metáforas delirantes. Até pelo ambiente marítimo, "Hora absurda" lembra um pouco "O barco bêbado", de Arthur Rimbaud. Os versos iniciais são estonteantes: "O teu sorriso é uma nau com todas as velas pandas... / Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso..." Usadas sem parcimônia, as reticências, parecem retardar mais ainda o ritmo sonolento e melancólico dos versos. E o que dizer destas duas linhas?  "A doida partiu todos os candelabros glabros, / Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas..."

Com exceção de "Hora absurda", os poemas do Cancioneiro mostrados ao lado não têm título. Por isso, para facilitar a referência, usamos como título o primeiro verso entre colchetes . Em "[Ela canta, pobre ceifeira]" o poeta usa a redondilha maior das canções tradicionais para plasmar o seu lirismo. Nada mais português. E nada mais Pessoa: "O que em mim sente 'stá pensando". Como lembra o poeta em outro texto do Cancioneiro, não transcrito aqui: "Eu simplesmente sinto  / Com a imaginação. / Não uso o coração." ("Isto").

No texto "[Dá a surpresa de ser]" destaca-se uma faceta rara na poesia de Pessoa. Salvo engano meu, este é talvez o único poema em que ele faz explicitamente uma referência erótica. Em [Gato que brincas na rua], o poeta faz uma especulação idêntica à que rege o poema da ceifeira. Há como que uma inveja de alguém ou de algo que parece naturalmente feliz e tranqüilo, sem as dúvidas dilaceradoras que assaltam o poeta: "És feliz porque és assim, / Todo o nada que és é teu. / Eu vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu."

Prestidigitador de palavras, "indisciplinador de almas" (como o chamou seu conterrâneo Jorge de Sena), Pessoa, o poeta-fingidor, comparece a todo o pano em "[Entre o sono e o sonho]":  "Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o quem eu me suponho / Corre um rio sem fim."

Nestes 70 anos sem a pessoa física do Pessoa, sua obra foi descoberta, publicada, traduzida para outros idiomas, estudada e até popularizada. Isso, naturalmente, tem um lado bom, que é a confirmação da permanência do poeta. No entanto, como lembra Leyla Perrone-Moisés, uma estudiosa da obra do lisboeta no Brasil, citar Pessoa entrou na moda, virou lugar-comum. "Os citadores contumazes", escreve a pesquisadora, "não se perturbam com o fato de, para cada citação de Pessoa, haver outra que diz exatamente o contrário".

Leyla Perrone-Moisés lembra que Pessoa é sempre citado "em nome de uma verdade". Mas "suas verdades são tantas e tão contraditórias que, no conjunto, negam a existência de qualquer verdade. Exceto a verdade fingida da arte, da literatura, do mito" (Leyla Perrone-Moisés, em Inútil Poesia, Cia. das Letras, São Paulo, 2000).

Apesar de tudo, o que importa é que Pessoa continua vivo. E cada vez maior.


Um abraço pessoano,


Carlos Machado

 

                             • • •

 

 

                             • • •


Veja outros poemas de Fernando Pessoa no boletim
- poesia.net 250

Pessoa, 70 anos depois

Fernando Pessoa

 


HORA ABSURDA

O teu silêncio é uma nau com todas as velas
             [ pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu
             [ sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e
             [ as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de
             [ qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se
             [ parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido,
             [ a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar
             [ traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a
             [ minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a
             [ idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio
             [ os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré
             [ cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana
             [ de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá fora... É em
             [ mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela
             [ escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que
             [ nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única
             [ estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca
             [ chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter
             [ sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as
             [ naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga
             [ sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe
             [ negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore
             [ que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me
             [ alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa
             [ nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos
             [ caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem
             [ chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das
             [ barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços
             [ daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as
             [ naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de
             [ vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os
             [ nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para
             [ si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque
             [ o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o
             [ olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele
             [ lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase
             [ mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas,
             [ muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais
             [ haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias,
             [ brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se
             [ nuas ao luar.
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham
             [ partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de
             [ naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo
             [ fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos
             [ jardins de outrora
As próprias sombras estão mais tristes...
             [ Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão,
             [ e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que
             [ eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha
             [ alma...
As relvas de todos os prados foram frescas
             [ sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares
             [ calma,
E eu ver isso em ti e um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos...
             [ Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...
             [ Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com
             [ pedras raras...
Minha alma é una lâmpada que se apagou e
             [ ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao
             [ sol!
Todas as princesas sentiram o seio
             [ oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas
             [ no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões
             [ nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale...
             [ Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na
             [ aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que
             [ está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que
             [ penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha...
             [ Fito-te e sonho...
Há cousas rubras e cobras no modo como
             [ medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor
             [ de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não
             [ perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é
             [ um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria
             [ tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora
             [ não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos
             [ os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia
             [ no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios
             [ eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio
             [ mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar
             [ sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de
             [ virgens que tecem..
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher
             [ que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o
             [ tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as
             [ pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas
             [ as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, com um ruído
             [ brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens
             [ que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo
    [ mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja
             [ nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio,
             [ auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica
             [ desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande
             [ sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é
             [ uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a
             [ meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo
             [ vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma
             [ bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta
             [ pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro
             [ este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face
             [ calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios
             [ medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a
             [ sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além
             [ dos sonhos...

[4-7-1913]



[ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA]

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

[1914]


[DÁ A SURPRESA DE SER]

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela tivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

[10-9-1930]


[GATO QUE BRINCAS NA RUA]

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

[1-1931]


[ENTRE O SONO E SONHO]

Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

[11-9-1933]


                            De Cancioneiro


HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidéreo
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da verdade.
                     
                         De Mensagem (1934)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Fernando Pessoa
In Obra Poética
Nova Aguilar, 7a. ed., Rio de Janeiro, 1977