Número 161 - Ano 4

Quarta-feira, 3 de maio de 2006 

«Aquele rio / está na memória / como um cão vivo / dentro de uma sala.» (João Cabral de Melo Neto)
 


Charles Simic


Caros amigos,


Nascido em Belgrado, Iugoslávia, em 1938, o poeta, tradutor e ensaísta americano Charles Simic mudou-se para Paris aos 15 anos. Em 1954, com a mãe e um irmão, transferiu-se para os Estados Unidos a fim de se juntar ao pai, que já residia lá.

Seus primeiros poemas foram publicados em 1959, mas sua estréia em livro deu-se em 1967, com o volume What The Grass Says (O que diz a relva). Professor de inglês, poeta consagrado, Simic ganhou o prêmio Pulitzer de 1990 com o livro The World Doesn't End (O mundo não se acaba). Como tradutor, publicou várias coletâneas de poemas vertidos para o inglês de idiomas como francês, sérvio, croata, macedônio e esloveno.

A infância vivida nos duros anos da Segunda Guerra Mundial representou uma experiência marcante para Simic e que certamente influencia até hoje seu trabalho poético. "Em 6 de abril de 1941, uma bomba caiu sobre um edifício bem em frente a minha casa. Lembro que me tirou da cama. É minha primeira recordação", conta ele numa entrevista publicada pela revista Agulha (em espanhol).

Um traço que a crítica costuma apontar na poesia de Simic são as imagens surrealistas, com a recorrência de termos como árvores, deuses, demônios e escuridão. No entanto, não há em seus versos as invenções delirantes dos surrealistas clássicos. Seus textos procuram extrair o que pode haver de absurdo ou fantástico nas coisas comuns.

Um exemplo disso é dado pelo poema "The White Room" (O Quarto Branco), transcrito ao lado. Nele, Simic busca o transcendente naquilo que é óbvio e está ao alcance da mão. Mas o poeta recusa a idéia de deuses metamorfoseados em objetos do dia-a-dia: grampos de cabelo, pentes, espelhos de mão. Isso certamente não ajuda a entender o mundo.

O poema "The White Room" pertence ao volume The Book of Gods and Devils, de 1990. Desse mesmo livro de deuses e demônios extraí o poema "In The Library" (Na biblioteca). Amante dos livros, o poeta vê neles deuses e anjos amontoados que parecem sussurrar coisas — somente para os íntimos.

Numa entrevista concedida em 1972, Simic declara: "A poesia é órfã do silêncio. As palavras nunca correspondem exatamente à experiência que está por trás delas". É como se o silêncio fosse um mundo ou uma dimensão perdida que a poesia procura resgatar.

Embora seja hoje uma das vozes mais originais e influentes na poesia americana, Simic não é conhecido no Brasil. Aqui, ninguém nunca se interessou em publicar uma antologia com poemas dele. A única iniciativa nesse sentido de que tenho notícia veio dos poetas  Fabio Weintraub e Ricardo Rizzo, que traduziram e publicaram 16 poemas de Simic na revista Cacto n. 3 (primavera de 2003). Rizzo também deu a público três outras traduções na revista Jandira n. 2 (outono de 2005).


A VOZ DO POETA
Para ouvir o poeta lendo o poema "In The Library", clique aqui, ou no alto-falante ao lado.
 

Um abraço,

Carlos Machado




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POETAS MALDITOS

Uma dica para quem está em São Paulo. O poeta Claudio Willer coordena o ciclo de debates Os Malditos, realizado de 23 de março a 18 de maio. Segundo Willer, "o termo 'malditos' designa autores cujas obras, por incompreensão de seus contemporâneos ou pela ação da censura, demoraram para ser lidas e aceitas; e que, subseqüentemente, exerceram influência e foram vistas como inovadoras." Os próximos debates, sempre às quintas-feiras, trarão palestras de João Silvério Trevisan, Cláudio Willer, Maria Lúcia dal Farra, Marcos Siscar e Lucila Nogueira.

Local:
  Biblioteca Mário de Andrade
  Rua da Consolação, Centro
  São Paulo, SP
Próximas datas:
   04/05; 11/05; e 18/05
Hora: 19:30h
Inscrições e Informações:
  tel. (11) 3256-5270, ramal 206
  ou pelo e-mail
  kbocchi@prefeitura.sp.gov.br

 

Órfão do silêncio

Charles Simic
 



 


 

O QUARTO BRANCO

                                    Tradução: Carlos Machado

O óbvio é difícil de
provar. Muitos preferem
o oculto. Eu também preferia.
Eu escutava as árvores.

Elas guardavam um segredo
que estavam prestes
a me revelar —
e não o fizeram.

Veio o verão. Cada árvore
de minha rua tinha sua própria
Xerazade. Minhas noites
faziam parte de suas histórias

selvagens. Entrávamos
em casas escuras,
casas sempre mais escuras,
silenciosas e abandonadas.

Havia alguém de olhos fechados
nos pisos superiores.
O medo e o fascínio me
mantinham bem desperto.

A verdade é nua e crua,
disse a mulher
que sempre se vestiu de branco.
Ela não saiu muito de seu quarto.

O sol apontava uma ou duas
coisas que tinham sobrevivido
intactas na longa noite.
As coisas mais simples,

difíceis em sua obviedade.
Essas não faziam barulho.
Era um dia do tipo
que as pessoas chamam "perfeito".

Deuses disfarçados de
grampos de cabelo, espelho de mão,
um pente com um dente faltando?
Não! Não era isso.

Apenas as coisas como são,
mudas, imóveis, sem piscar,
naquela luz brilhante —
e as árvores esperando a noite.
 

 

THE WHITE ROOM


The obvious is difficult
To prove. Many prefer
The hidden. I did, too.
I listened to the trees.

They had a secret
Which they were about to
Make known to me

And then didn't.

Summer came. Each tree
On my street had its own
Scheherazade. My nights
Were a part of their wild

Storytelling. We were
Entering dark houses,
Always more dark houses,
Hushed and abandoned.

There was someone with eyes closed
On the upper floors.
The fear of it, and the wonder,
Kept me sleepless.

The truth is bald and cold,
Said the woman
Who always wore white.
She didn't leave her room much.

The sun pointed to one or two
Things that had survived
The long night intact.
The simplest things,

Difficult in their obviousness.
They made no noise.
It was the kind of day
People described as "perfect."

Gods disguising themselves
As black hairpins, a hand-mirror,
A comb with a tooth missing?
No! That wasn't it.

Just things as they are,
Unblinking, lying mute
In that bright light

And the trees waiting for the night.








NA BIBLIOTECA

                                 Para Octavio

Há um livro chamado
Dicionário de Anjos.
Ninguém o abrira em cinqüenta anos.
Eu sei, porque quando o abri
as capas rangeram, as páginas
se esmigalharam. Ali descobri

que os anjos já foram tão numerosos
como espécies de moscas.
O céu ao entardecer
ficava coalhado deles.
Era preciso agitar os braços
para mantê-los a distância.

Agora o sol brilha
através das altas janelas.
A biblioteca é um lugar tranqüilo.
Anjos e deuses se amontoam
em livros escuros não-abertos.
O grande segredo repousa
em alguma estante, junto à qual
a srta. Jones passa
em suas rondas diárias.

Ela é muito alta e mantém
a cabeça inclinada como se escutasse.
Os livros estão sussurrando.
Não ouço nada, mas ela sim.

                                    Tradução: Carlos Machado




Ouça o poeta Charles Simic lendo o poema "In The Library"



IN THE LIBRARY
 

                                 for Octavio

There's a book called
A Dictionary of Angels.
No one had opened it in fifty years,
I know, because when I did,
The covers creaked, the pages
Crumbled. There I discovered

The angels were once as plentiful
As species of flies.
The sky at dusk
Used to be thick with them.
You had to wave both arms
Just to keep them away.

Now the sun is shining
Through the tall windows.
The library is a quiet place.
Angels and gods huddled
In dark unopened books.
The great secret lies
On some shelf Miss Jones
Passes every day on her rounds.

She's very tall, so she keeps
Her head tipped as if listening.
The books are whispering.
I hear nothing, but she does.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Charles Simic
• 
In The Book of Gods and Devils
    Harcourt Brace & Company,
    New York, 1990
    Copyright © 1990 by Charles Simic