Número 193 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

«A terra é feita de céu./ A mentira não tem ninho./ Nunca ninguém se perdeu./ Tudo é verdade e caminho.» (F. Pessoa) *
 


Iracema Macedo



Caros amigos,


Neste número, o poesia.net entra em seu quinto ano de circulação. Desde o boletim número 1, distribuído por e-mail em 12 de dezembro de 2002, centenas de poetas já passaram por esta modesta página semanal. Vê-la completar quatro anos é motivo de contentamento para mim. Porém melhor ainda é encontrar razão para acreditar que há, sim, algum lugar para a poesia e que faz sentido continuar por mais algum tempo. A todos os que vêm acompanhando o poesia.net,  meu sinceros agradecimentos pela companhia nesta jornada.


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Confesso que fico tomado de entusiasmo quando descubro um novo poeta. Descobrir, aqui, não tem o sentido pretensioso de “ninguém viu, eu vi primeiro”. Tem, antes, a idéia de “como é que eu não havia notado?”  É com esse tom de descoberta que trago a vocês a poeta potiguar Iracema Macedo, escritora que me foi apresentada virtualmente pelo poeta juiz-forano Edimilson de Almeida Pereira. Nascida em Natal (RN), em 1970, Iracema leciona filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais. 

A autora estreou na poesia ao participar da coletânea Vale Feliz, publicada em 1991 em parceria com Eli Celso e André Vesne. Quatro anos depois, e com os mesmos parceiros, ela integrou nova antologia, Gravuras. Em 1998, marcou presença em outra obra coletiva,
Ceia das Cinzas, também na companhia de Eli Celso e André Vesne. Seu primeiro livro-solo foi Lance de Dardos, que saiu em 2000. O trabalho mais recente de Iracema é  Invenção de Eurídice, de 2004.

Todos os poemas incluídos neste boletim vêm do livro Lance de Dardos. Trata-se de um volume que, na minha opinião, está entre o que surgiu de melhor na poesia brasileira nesta primeira década do século XXI. O título, obviamente, brinca com o "lance de dados" de Mallarmé. Mas, ao contrário do que sugere, a referência ao poema experimental do poeta francês não leva a uma poesia construtivista.

Os dardos de Iracema Macedo são atirados por uma poesia solar, emocionada e nitidamente feminina. Em literatura, quando se escreve o adjetivo "feminina", corre-se o risco de, conscientemente ou não, chancelar uma certa visão machista. Não é disso que se trata, aqui. Reafirmo o que disse no início: Lance de Dardos é um dos melhores livros de poesia lançados desde o ano 2000. Creio que os poemas transcritos ao lado, por si sós, são capazes de provar isso.

Mas feminina, sim. O que se descobre nesses poemas são vozes femininas. Leia-se, por exemplo, "O retorno de Saturno": "Saturno veio colher as romãs / brasas no pomar / Vivo nua pela casa / leio cartas, fecho as portas". Em "Idílio", é também uma mulher que, apaixonada, ama clandestinamente por meio dos livros.

Mas atenção: não estamos falando de mulheres ingênuas. As múltiplas personagens femininas que habitam a poesia de Iracema são rebeldes, enfrentam o mundo e tentam moldá-lo ao seu jeito. Uma delas, atrevida, tem resposta na ponta da língua para o anjo Gabriel: "peço-te afoitamente / que me faças assim / muito mais pornográfica do que lírica / muito mais profana do que tântrica / muito mais vadia do que tua". Aqui, o anjo — dominador e masculino — é bem direito e conforme. Gauche é ela, a mulher, que impõe suas regras no jogo.

O poema do anjo Gabriel comunica-se com este outro, "O Horto", que vale transcrever na íntegra:

Juazeiro, Juazeiro,
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
tantas imagens estilhaçadas
cacos de virgens Marias
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito

O ambiente parece ser Juazeiro do Norte, cidade do Padre Cícero e de tantos pedidos às potências celestes. As "imagens estilhaçadas / cacos de virgens Marias" seriam ao mesmo tempo os ex-votos e as próprias romeiras, carentes, em busca de  milagres.

As personagens desses poemas, sempre mulheres, vão desde a dona Chica da canção infantil "Atirei o pau no gato" até essas criaturas em brasa que abrigam nos braços a ventania de Mercúrio. Mulheres com "o coração cheio de vespas". Eis um lirismo que, embora amoroso, não  tem o dom de acalentar, mas de ser incômodo. Talvez uma das mulheres de Iracema Macedo explique tudo. É Carmem. Auxiliar do atirador de facas, "ela recebe os golpes um a um / Arremessos de perda, luxúria, ciúme".

Um abraço de aniversário, e até a próxima.

Carlos Machado

 

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poesia.net 4 anos


10 CANÇÕES DE CAMÕES

Ao completar quatro anos, o poesia.net traz um brinde para vocês. Trata-se das 10 Canções do vate Luís Vaz de Camões,  ditas pelo ator português Luís Miguel Cintra. As gravações são parte de um CD que acompanhou um número da revista portuguesa Oceanos, já extinta.

Os arquivos foram franqueados na web pela escritora portuguesa Amélia Pais, grande amante da literatura e incansável divulgadora da palavra poética.  Esses poemas são parte do que costuma ser reunido em livro sob o título Canções e Elegias.

Clique nos links para ouvir as canções. Para acompanhar a competentíssima leitura de Luís Miguel Cintra, veja o texto completo do livro Canções e Elegias.

          Canção 1
          Canção 2
          Canção 3
          Canção 4
          Canção 5
          Canção 6
          Canção 7
          Canção 8
          Canção 9
          Canção 10

Canções e Elegias (PDF)

 

 

O retorno de Saturno

Iracema Macedo

 



Cris Conde
Imagem: Cris Conde, brasileira (RJ)



DANDARA

Eu só acreditava em Drummond:
o amor chega tarde
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos



POEMA DO LOBO-DO-MAR

Como proteger-me desse lobo que vem vindo
Em que ilhas poderei me ocultar
em que barcos ousarei fugir
desse lobo que domina os barcos e as ilhas?

Reúno roupas negras faca escudo
De que adianta enfrentá-lo do meu jeito
se ele me despe do jeito que ele quer?

Como proteger-me dessas ondas
de prazer que ele traz em suas brisas
De que vale feri-lo com meus versos
De que vale me lançar ao mar

Se não há como esconder-me de mim mesma
do exílio que sinto quando fujo
da vontade que tenho de ficar?

 

Cris Conde
Imagem: Cris Conde


O RETORNO DE SATURNO

Saturno veio colher as romãs
brasas no pomar
Vivo nua pela casa
leio cartas, fecho as portas
Saturno me espia pelas frestas
me sussurra nomes feios
vivo cheia de varais
lampiões e pássaros acesos
Parece que estou esticada entre dois abismos
entre dois homens
entre dois vendavais
Abro a janela
encaro o deus
me vejo nos seus olhos
me vejo dentro dele
Quando é que esses olhos irão me acordar?
Quando é que irão me levar?
Quieto no seu canto
Saturno me estende a mão e um cálice
e é como se a vida chegasse
silenciosa e indolor
como os milagres

 

IDÍLIO

Entre notícias antigas e muralhas
construí com você
um amor feito alucinadamente de palavras
Meus versos seduzem os seus
seus versos aliciam os meus
Coloquei nossos livros juntos na estante
para que se toquem
e se amem clandestinamente
durante as madrugadas

 

Cris Conde
Imagem: Cris Conde


REPOSTA AO ANJO GABRIEL

Agora que aprendeste a incendiar-me
e me adivinhas inteira dentro do vestido
agora que invadiste a sala e o chão de minha
                                       [ casa
agora que fechaste a porta
e me calaste com teus lábios e língua
peço-te afoitamente
que me faças assim
ínfima e sagrada
muito mais pornográfica do que lírica
muito mais profana do que tântrica
muito mais vadia do que tua

 

O RITO DE CARMEM

Ela é uma forma de alucinação
de hino ao perigo
e ao furor
Perfuma-se com um poema
e se apronta
como quem vai ao cinema

Parece que não há riscos
em tudo que ela faz
mas ela acorda e dorme
sitiada
Mulher em que se atira facas
ela recebe os golpes um a um
Arremessos de perda, luxúria, ciúme

No centro do picadeiro
Um homem de olhos vendados
ameaça matá-la
todas as noites
diante dos aplausos inocentes



Cris Conde
Imagem: Cris Conde



DESTINO

Matei o gato, mamãe, matei o gato
mas o gato, mamãe, não morreu
passou o resto da vida
atravessando a sala
ensangüentado
Dona Chica não se espantou
e disse em tom muito sábio:
Esse bicho, Marília, não morre nunca
ou você foge ou finge suportá-lo

 

A CHEGADA DE MERCÚRIO

Acendes espelhos por onde passo
e mesmo em tua fúria
inventas silêncios que me acalmam
mirantes fogueiras viagens
tudo me trazes nos dias
em que ancoras
tua ventania nos meus braços
 


Cris Conde
Imagem: Cris Conde



ARDOR

Um oceano inteiro não basta
para calar no meu peito
este murmúrio
de tantas formas de ardor
tantas formas de estar banida e só
e não há terra ou chuva
que arrefeça
esta porção de mim
que trago cálida
esta porção de mim
que trago presa
este meu coração cheio de vespas

 

O HORTO

Juazeiro, Juazeiro,
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
tantas imagens estilhaçadas
cacos de virgens Marias
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito

 

Cris Conde
Imagem: Cris Conde


O TEU DEMÔNIO

O teu demônio me segue
anos a fio
ele tece flores para mim
divide meu corpo em partes
Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
eu aparo suas bordas seu rabo seus chifres
O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado
O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre
O teu demônio vai embora hoje
eu fujo dentro dele a galope
eu vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda
Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma
 


AS VESTES

Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus
                                                [ laços.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

•  Iracema Macedo
    In Lance de Dardos
   
Estúdio 53, Rio de Janeiro, 2000
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* Fernando Pessoa, "A morte é a curva da
   estrada", in Cancioneiro
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* Imagens: trabalhos da artista plástica
  carioca Cris Conde