Número 224 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 29 de agosto de 2007 

«Limpar as gavetas/ é como expurgar os remorsos da alma.» (Francisco Carvalho) *
 


Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu


Caros,


Neste boletim vamos fazer um breve passeio pelo romantismo brasileiro, guiados por Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, dois dos mais destacados ícones dessa escola literária.


A CENA

O quadro é tipicamente romântico. Estamos no Rio de Janeiro, em meados do século XIX. Num baile, a donzela na qual o poeta está interessado rodopia ao som de uma valsa nos braços de outro. O pobre amante — sofredor por definição, no romantismo — assiste a um canto, cheio de mágoa, mordido de ciúmes.

Gonçalves Dias descreveu uma cena assim em 1846. Treze anos depois, Casimiro de Abreu, que era um admirador do primeiro, refez a mesma descrição. Essa revisitação de temas não ocorreu apenas nesse caso entre os dois poetas. Casimiro, mais novo, chegou a compor uma "Canção do Exílio", homônima da escrita em Portugal por Gonçalves, também falando em palmeira e sabiá (veja sobre isso o boletim n. 174). Não há dúvida de que o primeiro texto é a origem do segundo. Basta observar os dois inícios: "Ontem no baile / Não me atendias!" (Gonçalves); e "Tu, ontem, / Na dança"...

Em "Pedido", Gonçalves Dias tenta obter o ritmo de dança mediante a repetição dos dois versos centrais em cada quadra. Todo o exagero romântico está lá. O sorriso e a voz que a moça dirige ao rival são concebidos pelo amante preterido como mortíferos punhais. Vale lembrar que a amada talvez nem desconfie ser capaz de provocar tamanha catástrofe no desconsolado mancebo.

Em "A Valsa", o texto de Casimiro, o ritmo é mais explícito, quase saltitante, marcado pelos versos curtíssimos, de apenas duas sílabas métricas. Na análise de Carlos Drummond de Andrade, mesmo dentro de igual ambientação romântica, Gonçalves revela um temperamento viril. Ele fecha o poema com um apelo à amada para que não fale nem sorria para o rival.

Casimiro — com "feminilidade", segundo Drummond — contenta-se, timidamente, em desejar que a moça sinta as mesmas dores que excruciam o amante. E isso, continua o itabirano, faz a diferença entre um mero imitador e o poeta que, partindo de um tema alheio, ilumina-o com indiscutível toque pessoal.


OS AUTORES

• Antonio Gonçalves Dias (1823-1864) nasceu em Caxias, no Maranhão. Era filho de um comerciante português com uma cafuza brasileira. Estudou direito em Coimbra, entre 1838 e 1845. Voltou à Europa em 1862, para tratamento de saúde, sem êxito. Ao retornar, a embarcação em que viajava naufragou em águas maranhenses. Gonçalves Dias foi a única vítima fatal. Doente, foi abandonado em seu leito no navio.

• Casimiro José Marques de Abreu (1839-1860) nasceu em Barra de São João, no Estado do Rio de Janeiro. Filho de um comerciante português e de uma fazendeira viúva, recebeu apenas instrução primária. Em 1853, embarcou para Portugal, onde manteve contato com os meios intelectuais e escreveu a maior parte de seus poemas. Retornou ao Brasil em 1857. Em 1859, reuniu seus poemas no volume Primaveras. Tuberculoso, morreu com apenas 21 anos.


A IDÉIA

Retirei a idéia de comparar esses dois poemas de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, "O Sorriso de Gonçalves Dias", publicada no livro Confissões de Minas. A crônica é do início dos anos 30 e o volume foi publicado originalmente em 1944.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado






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EVENTOS DA SEMANA

Esta  é uma semana movimentada. Aqui vão três eventos que merecem atenção: dois em São Paulo e um em Belo Horizonte.


* POESIA E PINTURA

Dica para quem está em São Paulo. O poeta baiano Cyro de Mattos falará sobre sua poesia nesta quinta-feira, 30/8, durante a abertura da exposição "Cores do Mar", com aquarelas de Sima Woiler  e esculturas de Andina Worcman. Poemas do livro Ecológico, de Mattos (Ed. Palimage, Viseu, Portugal, 2006), inspiraram os trabalhos expostos das duas artistas plásticas.

Data: 30/8/2007, quinta-feira
Hora: 19h30
Local: Centro Cultural da Marinha
Av. 9 de Julho, 4597 – Jardim Paulista
São Paulo – SP


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+ 95 – 15 = JOHN CAGE

Um grupo de artistas de diversas áreas
entre os quais os poetas Ricardo Aleixo e  Marcelo Dolabela apresenta em Belo Horizonte o espetáculo + 95 - 15 = john cage. Trata-se de um espetáculo para rememorar os 95 anos de nascimento e 15 de morte do compositor e artista visual de vanguarda americano John Cage.

Data: 30/8/2007, quinta-feira
Hora: 19h00
Local: Multiespaço Oi Futuro
Av. Afonso Pena, 4001
Belo Horizonte – MG
 

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* ANDRÉ LUIZ PINTO
Ao Léu

O poeta carioca André Luiz Pinto lança no próximo sábado, dia 1/9, seu livro Ao Léu, que sai pela Editora Bem-Te-Vi.

Data: 1/9/2007, sábado
Hora: 17h00
Local: Bar Paralelo 12:27
Rua Joaquim Távora, 1227 - Vila Mariana
(Próximo do Metrô Ana Rosa)
São Paulo, SP



 

Uma valsa e dois ciúmes

Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu

 


• Gonçalves Dias:


PEDIDO

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.

De mim bem longe
Teu pensamento!!
Teu pensamento,
Bem longe errava.

Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.

Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.

Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu'rias
Exp'rimentar-me.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.




• Casimiro de Abreu:


A VALSA

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...
Calado,
Sozinho

Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

•  Gonçalves Dias
    "Pedido", in Primeiros Cantos (1846)
•  Casimiro de Abreu
    "A valsa", in Primaveras (1859)
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* Francisco Carvalho, "Gavetas Limpas", in Centauros Urbanos (2003)