Maiara Gouveia
Caros,
Nascida em 1983, a paulistana Maiara Gouveia tem
poemas e artigos publicados sobre cinema e literatura em revistas, jornais e na
internet. Em 2006, foi uma das vencedoras do Prêmio Nascente, da USP, com livro
de poemas ainda inédito O Silêncio Encantado. A autora retrabalhou os
textos desse livro e posteriormente rebatizou-o para Pleno Deserto. Os
poemas mostrados ao lado foram extraídos de Pleno Deserto e também de
outra coletânea, também inédita, Divino Canto.
Poeta, indisfarçável leitora e ensaísta, Maiara Gouveia tem aguda consciência do
jogo literário. Em seus poemas algumas facetas se destacam. Uma delas, a mais
fácil de perceber, é a veia erótico-provocativa, talvez herdada, mesmo
longinquamente, de leituras baudelairianas. É fácil descobrir que Maiara visita
Baudelaire. Não é por acaso que o título do blog dela,
A Certeza de Fazer
o Mal, vem de uma frase do autor de As Flores do Mal.
Na verdade, no erotismo dos poemas de Maiara Gouveia encontram-se indagações que
partem do corpo e vão bater às portas da morte. Enfim, o velho embate entre Eros
e Tânatos.
Mas os poetas não têm respostas. Apenas perguntam e constatam, com
espanto, a sucessão de acontecimentos que passam além do poder de suas palavras.
É o que diz, perplexo, o poema "No Sumidouro":
"Ao redor do quarto / migra um cortejo de aves. Não vemos / pois estamos
fechados. (...) Não vemos / a morte solitária dos corais. Não vemos / a
embarcação vazia permanecer / no silêncio das águas."
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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LANÇAMENTO
Uma dica para quem estiver em São Paulo na próxima semana.
• Annita
Costa Malufe
- Nesta Cidade e
Abaixo de Teus Olhos
A poeta Annita Costa Malufe lança seu segundo livro de poemas no próximo dia
4/3, terça-feira. O volume, que tem por título Nesta Cidade e Abaixo de Teus
Olhos, sai pela Editora 7Letras. Anote:
Data: 4/3, terça-feira
Hora: A partir das 19h30
Local: Cantina d'Amico Piolim
Rua Augusta, 311 – Consolação
(próximo à esquina da rua Marquês de Paranaguá)
São Paulo – SP
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UBE, 50 ANOS
O poeta
Izacyl Guimarães Ferreira me para registrar o jubileu da União Brasileira de
Escritores, UBE, que completou 50 anos em janeiro. Entre outras atividades
culturais, a UBE publica a revista O Escritor. A edição atual, n. 117,
traz como tema de capa a obra do romancista paraibano José Lins do Rego
(1901-1957). Site da UBE: www.ube.org.br
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No silêncio das águas
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Maiara Gouveia |
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EMBEBIDA
E o nítido arranjo
dos lábios, um a um,
e o despudor de vê-los
inocentes,
desnudos num
ir e vir medonho,
embebedada duma
realidade úmida
e carnuda, a coxa nua
roça pele contra pele, o quase
encontro e desencontro
de mim dentro daquela fresta
que ora sobra, ora se insinua
num abre e fecha; as pernas
embaraçadas sob a mesa,
a sombra trêmula
dos pés no chão, o torso
dele na camisa
entreaberta, a cabeleira
em caracol evoca
a noite estrelada
em Holanda brilhante
e turbulenta,
e o deleite ainda evola
feito de um gole de absinto.
SUSPIRO VERMELHO
I
Mulheres que saem da sua pele
retiram dos seios
vultos dilacerados
afogam os dedos
no fundo da carne
Mulheres que saltam dos seus poros
esvaem das veias
desfalecidas
as línguas estiradas
sob um suspiro vermelho
II
Verter amor na sede. Ferida no mar.
Cicatriz. A onda rude que me abate.
Ou não haver margem
para escapar.
Pleno deserto. Há flores de sangue.
Corolas. Mulheres líquidas
que esvaem.
Pablo Picasso: Mulher com Leque
(um dos muitos quadros do pintor com
esse mesmo título), óleo sobre tela. Paris, final da primavera de 1908
DA ARTE DE SEDUZIR
EM DETALHES
perfumar o corpo jasmim
e sândalo nos ombros nus
a cabeleira em desalinho
se derramando a meia-taça
da peça íntima escolhida
previamente exibe o contorno
robusto um decote preciso
valoriza o colo e os seios
insinua o torneio das pernas
na meia-calça cor de noite
o vestido justo elegância
na curva dos cílios na sombra
dos olhos a prata dos brincos
de argolas num salto a sandália
brilhando a fivela dourada
destacando a graça singela
e espantosa dos tornozelos.
ATÉ QUE SE APAGUE A CENTELHA DA NOITE
Me bate. A centelha da noite
fincou sua estrela bendita na carne.
Me bate. Me bate.
Até que se apague
a centelha da noite
e o brilho da morte
seja maior do que a estrela
perdida na carne.
NO SUMIDOURO
Ao redor do quarto
migra um cortejo de aves. Não vemos
pois estamos fechados.
Ao redor do quarto
um barco repousa em um mar sem ondas. Não vemos
pois estamos partindo.
Ao redor do quarto
baleias abertas e peixes mortos cobrem a angra. Não vemos
pois estamos sangrando.
Porque estamos sozinhos não vemos
suicidas engolfados nas brânquias tóxicas
dos cardumes. Não vemos
a morte solitária dos corais. Não vemos
a embarcação vazia permanecer
no silêncio das águas. Não vemos:
pois estamos no escuro.
A MARCA DAS ORIGENS
Deus despeja sua ira: o Corpo.
E toda vida se abre e tudo é possível.
Você abandona sua força no meu dorso,
e a marca das origens
vem ferir suavemente minha pele que brilha.
Não sou só o corpo nem só o corpo me habita.
Sou o que move o mundo e o seu canto,
o que me faz mulher e a sua fibra masculina;
alma que ultrapassa o sonho das partículas:
penetra mais fundo para senti-la.
Deuses bárbaros povoam as costelas.
Sereias minúsculas mergulhadas na vagina.
A mágoa de deus, oceano:
borboleta verde-azul que se debate infinita.
Seus músculos, o rosto, um coágulo
peixes sob o útero: a flor carnívora.
Sou novamente o corpo e além do corpo
a alma das partículas:
— Penetra mais fundo para senti-la.
A MORTE CANTA. O CORPO SONHA.
Horas em chamas
Bebe a chama escura das horas,
o sangue do tempo.
Deita na sombra que estiola
no corpo sedento.
Cada segundo é uma porta aberta
Vejo seu dorso.
Quero tapar todas as frestas.
Mas você foge entre os dedos, nos seios,
no meio das pernas.
Enquanto a morte canta
Esse sopro de gelo na espinha é a morte que canta:
Não se retém o amor na concha das mãos.
Não se retém.
O amor, não se retém. Fica.
Enquanto puder.
O corpo sonha
Não vive a despedida com afinco.
Mas suga o primeiro pasmo até a última gota.
Há tanto mistério a ser capturado em pleno dia.
Há tanta noite umedecida no sonho do corpo.
De Pleno Deserto (inédito)
[SOL ARRUINADO]
Sol arruinado. Cabeça triturada dentro de uma flor.
Cerca nosso corpo o silêncio
das palavras destruídas.
Dos destroços vem a musa.
Sibila: da face da morte.
E a sombra do corpo se expande.
Cicia: cede ao apelo.
E rasga o poema um filete de sangue.
Exige: avança.
E surgem cães de caça nos olhos do crânio.
Na pele, pedaços de sol escurecido: deleite
manchado pela angústia. Dos cacos,
poder recompor a face dos anjos.
Mas da máscara à deriva, inundação.
Pilhas de mortos no fundo do olho.
Poeira de cães num lago de sangue.
Ela grita: cessa tudo.
E acende uma vela no meio da sombra.
[PORQUE ADENTRO A MANHÃ]
Porque adentro a manhã
estupidamente clara, posso ver o desvão
onde a madrugada vomita os vivos como mortos.
Vagueiam. E têm a face sem assombro.
Ergueram paredes ao redor da noite.
Ergueram muros, dividiram
o homem.
Mataram o espírito. Dissecaram a carne.
E o homem ficou nítido e exato: perna e cabeça
distantes do tronco.
E em cada fenda, em cada flanco
a sombra de um deus esquartejado.
Onde cada vértebra,
cada veia aberta
canta.
Mas não há como voltar
ao íntimo do escuro.
Não há como escalar
as vísceras e o sangue.
Não há como chegar
ao mais fundo do poço.
Onde o medo e a morte
também cantam.
De Divino Canto (inédito)
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