Número 327 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 4 de março de 2015

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«Amor é compromisso / com algo mais terrível do que amor?» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Sônia Barros
Sônia Barros

 

Amigas e amigos,


A escritora paulista Sônia Barros (Monte Mor, 1968) é mais conhecida do público infantojuvenil, para quem já publicou quase duas dezenas de títulos, entre histórias de ficção e poesia. Nessa seara, Sônia Barros apareceu aqui no boletim n. 267. Mas ela também escreve versos para adultos. Sua estreia nessa área deu-se com o livro Mezzo Voo (2007), que serviu de base para o boletim n. 207.


Em Mezzo Voo, a poeta apresenta um lirismo delicado, mas inquieto, pronto para questionar, como escrevi oito anos atrás, “as minguadas ofertas do mundo”.

A autora retorna agora, trazida por sua segunda coletânea de poemas para adultos, Fios (2014). Publicado pela Biblioteca Pública do Paraná, esse volume foi o vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2014, categoria poesia.

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De Fios selecionei seis poemas para a pequena antologia ao lado. O primeiro, “Fim da Linha”, descreve um episódio ferroviário certamente associado à memória do narrador: “O trem desapareceu, / nunca mais foi visto”, mas retorna do esquecimento para impressionar os sentidos de quem “carrega uma estação / de trem por dentro”. É curioso como, de todos os meios de transporte, o trem ocupa o mais amplo espaço no imaginário das pessoas. Pena que no Brasil a experiência ferroviária tenha sido sustada pela escolha do automóvel como meio de transporte fundamental.


Em “Vertente”, a autora se volta para o fenômeno da criação poética. Fala das “vozes que vêm para o poema / mas não foram convidadas”. Essas palavras ou opiniões intrusas são comparadas ao zurrar do sofrido asno-título do filme Balthazar (no Brasil, A Grande Testemunha, 1966), dirigido pelo francês Robert Bresson (1901-1999). Bresson, para quem não lembra, é mais conhecido pelo filme Pickpocket - O Batedor de Carteiras (1959). E atenção: "Há verbos que invadem, perfuram o osso / do poema e do poeta". Do lado de cá, pedimos licença à poeta e acrescentamos: e também dos leitores.


No poema “Constatação”, Sônia Barros penetra fundo no poço dos sentimentos para trazer de lá uma ideia inusitada: “não é a morte o pior verdugo”. O que maltrata, mesmo, o que cava “na alma / maior ruína é a sina de ser só”. Ou seja, a solidão dilacera mais que a morte. Do ponto de vista dos seres humanos, bichos gregários e dependentes de apoio e afeto, aí está uma constatação verdadeira e forte.


“Fio a Fio” é um exemplo de poema que parece construído a partir de um momento íntimo, um quase-nada, uma pequena emoção familiar. Aparentemente, sons externos (“ruído de rodas no asfalto”, “vento”, “passos no andar de cima”, chuva no telhado) criam dentro da noite um instante de apreensão, quase medo. Mas a respiração da criança “no quarto ao lado” transforma todas as preocupações na certeza de uma “súbita alvorada”. Sensível e refinado.


Em “Futuro”, o ponto de partida é uma cena que há muito (no mundo inteiro) gostaríamos de que fosse algo do passado. Infelizmente, ainda não é: a menina catando restos no lixo. E o futuro a espera, “com garras / e agulhas / sem linha”. Ou seja: sem fios para que se possa criar um enredo. Sinistramente, é como se o rumo dessa pequena vida já estivesse (irremediavelmente) traçado.


Um dos aspectos que se destacam no livro Fios é o diálogo com outras artes. Em “Vertente”, mais acima, vimos a referência a um personagem de cinema. Em “Moça com Brinco de Pérola”, o ponto de partida é o famoso quadro do holandês Johannes Vermeer (1632-1675), que já rendeu romance e filme homônimos. Em seu brevíssimo poema, Sônia Barros destaca um “indevassável desejo” nos olhos da moça retratada pelo mestre neerlandês.


E viva a grande arte. É sempre um prazer (e um mistério) ver que um quadro seiscentista ainda desperta a veia criativa de poetas do século XXI.


Abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

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Moça com brinco de pérola

Sônia Barros
 

 



Vermeer - A Leiteira (1665)
Johannes Vermeer (1632-1675), holandês, A Leiteira (1665)




FIM DA LINHA

O trem desapareceu,
nunca mais foi visto,
           só o apito percorre
           o trilho do ouvido,
vai e vem intermitente,
agulha a cerzir espaços,
           esgarçados lodaçais
           do esquecimento:
o ontem ressurgindo
no ritmo de espasmos,
           luz cortando sombras
           no túnel do pensamento,
ouvido inconsciente
de quem até hoje sente
           e carrega uma estação
           de trem por dentro.




Vermeer
Vermeer, Moça Tocando Guitarra (1669-1672)




VERTENTE

Há vozes que vêm para o poema
mas não foram convidadas, surgem
como luz soprada por lábios de um sol improvável,
música inusitada a nascer num jorro que rasga
e fecunda o solo solitário das palavras.
Há verbos que invadem, perfuram o osso
do poema e do poeta — feito o zurrar de um asno,
como em Balthazar, de Bresson — e permanecem
tamanha a correnteza de seu gozo.




Vermeer - Moça com jarro d'água
Vermeer, Moça com Jarro d'Água (1662-1663)





CONSTATAÇÃO

Descobriu sem tristeza
e, apesar de ter sentido
uma espécie de frio,
tampouco houve surpresa
no momento da descoberta:

não é a morte o pior verdugo,
com seus fios verde-musgo,
garras sob pele tenra,
hera primeva a esconder
no ventre o muro do fim;

carrasco a cavar na alma
maior ruína é a sina de ser só
— sol latente no coração da sombra —
que em nada se aproxima
do estado desejado de não ser.




Vermeer - Mulher com Criada segurando uma carta
Vermeer, Mulher com Criada Segurando Uma Carta (1673-1675)




FIO A FIO

           Para o Bruno

Ranger de rodas no asfalto
mastigando águas, língua
do vento a roçar o vidro
de tímpanos insones, dança
desencontrada de pálpebras, portas
e janelas, passos no andar de cima
inter(calados) com os pingos
no telhado da sacada.

No quarto ao lado,
a respiração-presença do menino
mistura-se à carícia do cheiro da chuva,
sobrepõe-se aos sons da escuridão
e faz nascer no peito
súbita alvorada.




Vermeer - Mulher de Azul Lendo uma Carta
Vermeer, Mulher de Azul Lendo uma Carta (1662-1663)




FUTURO

No esgoto,
catando restolhos,
a menina procura
cerzir o vinco
do estômago.

No alto,
o futuro a espia
com garras
e agulhas
           sem linha.




Vermeer - Moça com Brinco de Pérola
Vermeer, Moça com Brinco de Pérola (1665-1666)




MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA

Além da pérola
na orelha da moça
de Vermeer,

o indevassável
desejo nos olhos:
sonho a arder.


 

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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015


Sônia Barros
   In Fios
   Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2014
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* Carlos Drummond de Andrade, "Mineração do Outro",
  in Lição de Coisas (1964)
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- Todas as imagens: pinturas do holandês Johannes Vermeer (1632-1675)