Sônia Barros
Amigas e amigos,
A escritora paulista Sônia
Barros (Monte Mor, 1968) é mais conhecida do público infantojuvenil, para quem
já publicou quase duas dezenas de títulos, entre histórias de ficção e poesia.
Nessa seara, Sônia Barros apareceu aqui no
boletim n. 267. Mas ela também escreve versos para adultos. Sua estreia
nessa área deu-se com o livro Mezzo Voo (2007), que serviu de base para o
boletim n. 207.
Em Mezzo Voo, a poeta
apresenta um lirismo delicado, mas inquieto, pronto para questionar, como
escrevi oito anos atrás, “as minguadas ofertas do mundo”.
A autora retorna
agora, trazida por sua segunda coletânea de poemas para adultos, Fios
(2014). Publicado pela Biblioteca Pública do Paraná, esse volume foi o vencedor
do Prêmio Paraná de Literatura 2014, categoria poesia.
•o•
De Fios
selecionei seis poemas para a pequena antologia ao lado. O primeiro, “Fim
da Linha”, descreve um episódio ferroviário certamente associado à memória do
narrador: “O trem desapareceu, / nunca mais foi visto”, mas retorna do
esquecimento para impressionar os sentidos de quem “carrega uma estação / de
trem por dentro”. É curioso como, de todos os meios de transporte, o trem ocupa
o mais amplo espaço no imaginário das pessoas. Pena que no Brasil a experiência
ferroviária tenha sido sustada pela escolha do automóvel como meio de transporte
fundamental.
Em “Vertente”, a autora se volta para o fenômeno da criação poética. Fala das
“vozes que vêm para o poema / mas não foram convidadas”. Essas palavras ou
opiniões intrusas
são comparadas ao zurrar do sofrido asno-título do filme Balthazar (no Brasil,
A
Grande Testemunha, 1966), dirigido pelo francês Robert Bresson (1901-1999).
Bresson, para quem não lembra, é mais conhecido pelo filme Pickpocket - O
Batedor de Carteiras (1959). E atenção: "Há verbos que invadem, perfuram o
osso / do poema e do poeta". Do lado de cá, pedimos licença à poeta e
acrescentamos: e também dos leitores.
No poema “Constatação”, Sônia Barros
penetra fundo no poço dos sentimentos para trazer de lá uma ideia inusitada:
“não é a morte o pior verdugo”. O que maltrata, mesmo, o que cava “na alma /
maior ruína é a sina de ser só”. Ou seja, a solidão dilacera mais que a morte. Do ponto
de vista dos seres humanos, bichos gregários e dependentes de apoio e afeto, aí
está uma constatação verdadeira e forte.
“Fio a Fio” é um exemplo de poema que parece construído a partir de um
momento íntimo, um quase-nada, uma pequena emoção familiar. Aparentemente, sons
externos (“ruído de rodas no asfalto”, “vento”, “passos no andar de cima”, chuva
no telhado) criam dentro da noite um instante de apreensão, quase medo. Mas a
respiração da criança “no quarto ao lado” transforma todas as preocupações na
certeza de uma “súbita alvorada”. Sensível e refinado.
Em “Futuro”, o
ponto de partida é uma cena que há muito (no mundo inteiro) gostaríamos de que
fosse algo do passado. Infelizmente, ainda não é: a menina catando restos no
lixo. E o futuro a espera, “com garras / e agulhas / sem linha”. Ou seja: sem
fios para que se possa criar um enredo. Sinistramente, é como se o rumo dessa
pequena vida já estivesse (irremediavelmente) traçado.
Um dos aspectos
que se destacam no livro Fios é o diálogo com outras artes. Em “Vertente”, mais
acima, vimos a referência a um personagem de cinema. Em “Moça com Brinco de
Pérola”, o ponto de partida é o famoso quadro do holandês Johannes Vermeer
(1632-1675), que já rendeu romance e filme homônimos. Em seu brevíssimo poema,
Sônia Barros destaca um “indevassável desejo” nos olhos da moça retratada pelo
mestre neerlandês.
E viva a grande arte. É sempre um
prazer (e um mistério) ver que um quadro seiscentista ainda desperta a veia
criativa de poetas do século XXI.
Abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
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poema, ou trecho de poema, ilustrado. Às quartas-feiras, o conteúdo
é um boletim — ou este que você recebe quinzenalmente ou uma edição antiga.
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Moça com brinco de pérola
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Sônia Barros
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Johannes Vermeer (1632-1675), holandês, A Leiteira (1665)
FIM DA LINHA
O trem
desapareceu, nunca mais foi visto,
só o apito percorre
o trilho do ouvido, vai e vem intermitente, agulha a cerzir espaços,
esgarçados lodaçais
do esquecimento: o ontem ressurgindo no ritmo de espasmos,
luz cortando sombras
no túnel do pensamento, ouvido inconsciente de quem até hoje sente
e carrega uma estação
de trem por dentro.
Vermeer, Moça
Tocando Guitarra (1669-1672)
VERTENTE
Há vozes que vêm para o poema mas não foram
convidadas, surgem como luz soprada por lábios de um sol improvável,
música inusitada a nascer num jorro que rasga e fecunda o solo solitário
das palavras. Há verbos que invadem, perfuram o osso do poema e do
poeta — feito o zurrar de um asno, como em Balthazar, de Bresson —
e permanecem tamanha a correnteza de seu gozo.
Vermeer, Moça com Jarro d'Água (1662-1663)
CONSTATAÇÃO
Descobriu sem tristeza e, apesar de ter sentido uma espécie de
frio, tampouco houve surpresa no momento da descoberta:
não é a
morte o pior verdugo, com seus fios verde-musgo, garras sob pele
tenra, hera primeva a esconder no ventre o muro do fim;
carrasco a cavar na alma maior ruína é a sina de ser só — sol
latente no coração da sombra — que em nada se aproxima do estado
desejado de não ser.
Vermeer, Mulher com Criada Segurando Uma Carta (1673-1675)
FIO A FIO
Para o Bruno
Ranger de rodas no asfalto mastigando águas, língua do vento a
roçar o vidro de tímpanos insones, dança desencontrada de pálpebras,
portas e janelas, passos no andar de cima inter(calados) com os pingos
no telhado da sacada.
No quarto ao lado, a respiração-presença do
menino mistura-se à carícia do cheiro da chuva, sobrepõe-se aos sons
da escuridão e faz nascer no peito súbita alvorada.
Vermeer, Mulher de Azul Lendo uma Carta (1662-1663)
FUTURO
No esgoto,
catando restolhos, a menina procura cerzir o vinco do estômago.
No alto, o futuro a espia com garras e agulhas
sem linha.
Vermeer,
Moça com Brinco de Pérola (1665-1666)
MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA
Além da pérola na orelha da moça de Vermeer,
o indevassável
desejo nos olhos: sonho a arder.
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