«Súbito, de aço, um dia
infinito estilhaçou-se.» (Bernardo
Soares) *
Em sentido horário: Cecília Meireles, Sônia Barros,
José Paulo Paes e Ruy Proença
Caros,
Entre os poetas, não são muitos os que se dedicam a escrever para crianças. E
entre os que o fazem, poucos são aqueles que alcançam a graça, a leveza e a
criatividade que representam o passaporte obrigatório para se comunicar com o
mundo infantil. Durante o século XX, dois dos poetas que mais se destacaram
nessa tarefa, no Brasil, foram
Cecília Meireles (1901-1964) e
José Paulo Paes
(1926-1998).
Tanto a carioca Cecília como o paulista Paes exercitaram-se com muita felicidade
na difícil tarefa de escrever para infantes. Os riscos mais comuns desse
exercício são, de um lado, produzir poemas numa linguagem tatibitateante, que na
prática trata os pequenos como bobocas.
No outro extremo dessa mesma linha, a casca de banana consiste em tentar atrair
as crianças com poemas de rasa elaboração, achando — mais uma vez — que só
adultos são capazes de perceber sutilezas e astúcias criativas. Outro perigo,
ainda, é achar que o poema infantil é o lugar adequado para aplicar lições de
moral.
Os trabalhos de Cecília Meireles e José Paulo Paes conseguem escapar de todas
essas armadilhas. Lançado originalmente em 1964, o livro Ou Isto ou
Aquilo reúne os poemas infantis de Cecília. Esses poemas já embalaram
várias gerações de leitores miúdos que tiveram a sorte de ser apresentados a eles por
pais, parentes, professores ou amigos. Quem é capaz de esquecer o ritmo gracioso
de "A Bailarina"?
Esta menina / tão pequenina / quer ser bailarina. // Não conhece nem dó nem
ré / mas sabe ficar na ponta do pé. (...)
Do mesmo modo, em seus últimos 15 anos de vida, José Paulo Paes publicou uma
dezena de volumes voltados especificamente para leitores infantis. O primeiro
foi É Isso Ali, que saiu em 1984. Curiosamente, talvez ainda inseguro em
sua estréia infantil, Paes indicou como subtítulo do livro: Poemas
Adulto-Infanto-Juvenis. Ora, de fato são textos capazes de encantar pessoas
de qualquer idade. Querem um exemplo? O poeminha "Portuguesa":
— Manuel, quando é agora?
— Ora, pois
pois:
depois de antes ou antes de depois!
•o•
Neste boletim, reuni uma pequena amostra de poemas infantis de Cecília e Paes.
Ao mesmo tempo, para não deixar a idéia de que o trabalho desses dois poetas
ficou sem continuidade, acrescento textos de outros dois poetas de gerações mais
recentes, ambos já enfocados aqui no poesia.net:
Sônia Barros e
Ruy Proença.
O paulistano Proença, depois de vários livros de poemas adultos e traduções,
envereda pela primeira vez na poesia infanto-juvenil com o voluminho Coisas
Daqui (2007). Sônia Barros, paulista de Monte Mor, já publicou uma dúzia de
livros de ficção para menores e estreou em 2007 na área de poesia para
adultos, com Mezzo Vôo. No ano seguinte, marcou nova estréia, com
Coisa Boa, coletânea de poemas para infantes.
Alguns dos traços comuns entre os melhores poemas infantis são a brincadeira com
palavras, o nonsense, o trocadilho, rimas bem cantantes — e, obviamente, ritmo.
O cantor paulista Madan exibe especial afeição pela poesia. Ele compôs dezenas
de canções baseadas em textos poéticos, formando parcerias com escritores como
Haroldo e Augusto de Campos, Adélia Prado e Olga Savary. Madan também musicou
vários poemas de José Paulo Paes, inclusive dois citados aqui:
"Raridade" e "Gato da China".
MADAN NEVES (1961-2014)
O cantor e compositor Madan Neves faleceu em setembro de 2014. Alterei agora
(outubro, 2014) este boletim para incluir, ao lado, um clipe do YouTube com a
gravação dele de "Raridade" (Madan/José Paulo Paes). Faço este registro como uma
homenagem a Madan, amante da boa poesia.
•o•
LANÇAMENTOS
Um livro de contos e outro de poesia britânica traduzida, ambos em São Paulo.
Richard Price
•Cartas de Ontem
O poeta britânico Richard Price dá a público o volume Cartas
de Ontem, uma coletânea de poemas que versam sobre a temática amorosa. Nascido
na Escócia em 1966, Price estará presente ao lançamento. O livro foi traduzido
pela poeta
Virna Teixeira e publicado pela Lumme Editor.
Data: 19/6, quinta-feira
Hora: 19h30
Local: Sala Cultura Inglesa do Centro Brasileiro Britânico
Rua Tucambira, 163 – Pinheiros.
São Paulo – SP
Gregório Bacic
• Olhares Plausíveis
O
jornalista e cineasta Gregório Bacic lança seu segundo livro de contos,
Olhares Plausíveis. Bacic é um dos criadores e diretor do programa
"Provocações", da TV Cultura de São Paulo.
Data: 25/6, quinta-feira
Hora: 19h00 às 22h00
Local: Livraria da Vila
Rua Fradique Coutinho, 915
Vila Madalena
São Paulo – SP, tel. (11) 3814-5811
•o•
Age de Carvalho fala
sobre Max Martins
A propósito do
boletim n. 266, sobre o poeta paraense Max
Martins, o também paraense e poeta Age de Carvalho faz algumas considerações que
acrescentei ao boletim na internet. Convido vocês a conferir essas observações,
clicando no link acima.
Hora de brincar
Cecília Meireles, José Paulo Paes,
Ruy Proença e Sônia Barros
• José
Paulo Paes
O cantor e compositor paulista Madan Neves (1961-2014)
musicou e gravou "Raridade", poema de José Paulo Paes
RARIDADE
A arara
é uma ave rara
pois o homem não pára
de ir ao mato caçá-la
para a pôr na sala
em cima de um poleiro
onde ela fica o dia inteiro
fazendo escarcéu
porque já não pode
voar pelo céu.
E se o homem não pára
de caçar arara,
hoje uma ave rara,
ou a arara some
ou então muda seu nome
para arrara.
De Olha o Bicho (1989)
GATO DA CHINA
Era uma vez
Um gato chinês
Que morava em Xangai
Sem mãe e sem pai
Que sorria amarelo
Para o Rio Amarelo
Com seus olhos puxados
Um pra cada lado
Era um gato mais preto
Que tinta nanquim
De bigodes compridos
Feito um mandarim
Que quando espirrava
Só fazia “chin!”
Era um gato esquisito
Comia com palitos
E quando tinha fome
Miava “ming-au!”
Mas lambia o mingau
Com sua língua de pau
Não era um bicho mau
Esse gato chinês
Era até legal
Quer que eu conte outra vez?
Do CD Brincando com Palavras (2005)
S
O sapo saltou na sopa
de um sujeito que, sem mais papo,
deu-lhe um sopapo e gritou: —
Opa!
Não tomo sopa de sapo!
De Uma Letra Puxa a Outra (1992)
VALSINHA
É tão fácil
dançar
uma valsa,
rapaz.
Pezinho
pra frente,
pezinho
pra trás.
Pra dançar
uma valsa
é preciso
só dois.
O sol
com a lua.
Feijão
com arroz.
CORREÇÃO
Como dizia
aquele bem-te-vi que ficou míope:
“bem te via... bem te via...”
De É Isso Ali (1984)
• Cecília Meireles
Ilustração: Vânia Medeiros
OU ISTO OU AQUILO
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
Quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo dinheiro e não compro doce,
ou compro doce e não guardo dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo
A LUA É DO RAUL
Raio de lua.
Luar.
Lua do ar
azul.
Roda da lua.
Aro da roda
na tua
rua,
Raul!
Roda o luar
na rua
toda
azul.
Roda o aro da lua.
Raul,
a lua é tua,
a lua da tua rua!
A lua do aro azul.
COLAR DE CAROLINA
Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.
O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral
nas colunas da colina.
O ECO
O menino pergunta ao eco
onde é que ele se esconde.
Mas o eco só responde: “Onde? Onde?”
O menino também lhe pede:
“Eco, vem passear comigo!”
Mas não sabe se o eco é amigo
ou inimigo.
Pois só lhe ouve dizer “Migo”.
De Ou Isto ou Aquilo (1964)
• Ruy Proença
CRIME EM SÃO JOÃO DEL REY
Consta dos autos
de um processo:
um sino que é réu
inconfesso.
Ora vejam só
a história:
badalando o sino
o sineiro
morreu
atingido
pelo sino.
Acusação:
sino assassino.
FLORES MÓVEIS
Os peixes
aprenderam
com as borboletas
todas as cores
da paleta.
COISAS DAQUI
Para Maíra
bruxa
em dia de chuva
não usa vassoura
voa de rodo
De Coisas Daqui (2007)
• Sônia Barros
COISA BOA
Coisa boa é empinar pipa no pasto.
Para não se perder no infinito,
o olhar se prende no rastro colorido
que o rabo da pipa pinta no céu.
A pipa é só um pontinho
lá longe
em cima da linha do horizonte.
Coisa boa é a hora do banho
pra eu me fazer de marinheiro
e transformar em mar
a água do chuveiro.
Rodo vira remo,
tapete vira barco,
e o banheiro...
fica um charco!
Coisa boa é correr atrás
de uma galinha-d’angola.
Ela diz que está fraca,
mas dá uma baita canseira.
Parece que joguei bola
a manhã inteira!
Coisa boa é descansar num tapete macio
de folhas e grama.
Mastigar um talo de cana,
ouvindo o uivo do vento
e o burburinho do rio.
Cecília Meireles
• Cecília Meireles In
Ou Isto ou Aquilo, Civilização Brasileira, 3ª. ed.,
Rio de Janeiro, 1979
• José Paulo Paes —
"Raridade", in
Olha o Bicho - Ática, 11ª ed., 12ª reimpr.,
São Paulo, 1989 —
"Gato da China", in CD Brincando com Palavras
– Poemas
de
musicados e gravados pelo compositor
Madan
Gravadora Lua Music, São Paulo, 2005
—
"S", in Uma Letra Puxa a Outra, Cia. das Letrinhas, 18ª
reimpr., São Paulo, 2008
—
"Valsinha", "Correção", in É Isso Ali, Salamandra, 13ª imp.,
Rio de Janeiro, 1993
• Ruy Proença In
Coisas Daqui Comboio de Corda, São Paulo, 2007
• Sônia Barros In Coisa Boa Editora Moderna, São Paulo, 2008
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* Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa,
in O Livro do
Desassossego