Amigas e amigos,
No boletim n. 335 (julho de 2015), sob o título “‘Traduções’ modernistas”,
apresentei poemas antigos que Manuel Bandeira, como diversão, ocupou-se de “traduzir para moderno”. São textos de Bocage, Joaquim Manuel de Macedo e Castro Alves.
Agora, após a edição n. 417, dedicada ao poeta americano William Carlos Williams,
encontrei um texto que faz algo similar com um poema desse autor. Na verdade, conforme vamos verificar, a semelhança está apenas no ponto de partida.
Bandeira reescreve as páginas originais, modernizando-as. Neste outro caso, o desconhecido poeta australiano Adam Ford produz uma “resposta” ao poema
“This is just to say / Isto é só para dizer”, de Williams, usando — também por brincadeira — a mesma estrutura do texto de referência.
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O poema “This is just to say / Isto é só para dizer” foi transcrito aqui, com tradução do poeta carioca Antonio Cicero, na citada edição n. 417. Ao lado de
“The Red Wheelbarrow / O Carrinho de Mão Vermelho”, é a página mais conhecida e citada de WCW. O texto tem o jeito de um recado colado à porta da geladeira
doméstica. Consoante com os padrões de coloquialidade propostos por Williams, esse poema eleva um bilhete trivial à condição de poema.
Vale observar que o texto original é completamente neutro em relação ao gênero do autor ou autora do bilhete. Ali, nenhuma palavra traz, ou trai, qualquer
informação sobre isso. De todo modo — talvez pelo fato de o poeta ser um homem —, tende-se a entender que há no contexto um casal e que o homem come as ameixas
guardadas pela mulher e deixa a mensagem meio irônica fixada à porta da geladeira.
Contudo, isso é só impressão. À luz do texto, pode ser o inverso, e também nada impede que as duas pessoas sejam um casal qualquer
— incluindo homem-homem, mulher-mulher —, ou mesmo um não casal: duas amigas, dois amigos, dois irmãos,
pai ou mãe e filho ou filha. Enfim, uma dupla de seres humanos
convivendo na mesma casa.
Mas é exatamente pela brecha dos relacionamentos domésticos que entra o poema de Adam Ford. O poeta australiano supõe que as duas pessoas sejam um casal.
E no poema-resposta fica patente a existência de rusgas anteriores, que agora explodem. O estopim são as frutas do desjejum, e o mal-estar envolve até ameaças
de separação.
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Ao traduzir o poema de Adam Ford, encontrei uma sutil dificuldade nos últimos versos. Na primeira versão, fixei: “vou / abandonar você, / seu estúpido /
egoísta”. Esta solução, no entanto, fere a neutralidade de gênero no texto paródico, que também não
revela se quem escreve a resposta é homem ou mulher.
Por fim, encontrei uma saída. Em vez dos versos “seu estúpido / egoísta” (“seu” e “estúpido” no masculino), optei por “desprezível / egoísta”, duas palavras de gênero
indefinido. Perde-se um pouco do tom coloquial, mas respeita-se a neutralidade genérica do texto-fonte.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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