Número 435 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 13 de novembro de 2019

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«Sempre haverá / uma voz / que te chama / de onde o prodígio / não veio.» (Francisco Carvalho) *

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Eunice Arruda
Eunice Arruda



Amigas e amigos,

Esta edição do boletim é dedicada à autora paulista Eunice Arruda (1939-2017), cuja poesia foi reunida este ano no livro Visível ao Destino - Obra Completa e Inéditos, organizado por André Arruda M. César, filho da autora, e publicado pela Editora Patuá. Nesse volume de 684 páginas estão enfeixadas 16 coletâneas da poeta.

A característica que mais salta aos olhos na poesia de Eunice Arruda é a concisão. Seus versos são quase sempre curtos e integram poemas que raramente chegam ao fim da página. Na opinião da poeta e ensaísta Beatriz H. Ramos Amaral, expressa no prefácio de Visível ao Destino, Eunice “escolheu a condensação e as desconcertantes elipses sintáticas para abrigar seu ato poético”. De fato, este é um dos traços da poesia de Eunice.

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Para esta edição, escolhi um punhado de poemas que, na minha opinião, dão alguma notícia da poesia de Eunice Arruda. Os dois primeiros — “Propósito” e “Acidente” — vêm do livro É Tempo de Noite, de 1960. Desde seus passos iniciais, a poeta já cultivava força e estoicismo diante da poesia e da vida. “Viver pouco mas / viver muito”, define ela em “Propósito”. E essa ideia se reafirma, depois, com a consigna: “Nunca morrer / enquanto viver”. Em “Acidente”, ela explora o contraste entre um pequeno fato desagradável e o fingimento em torno dele, que aparentemente o anula.

Os dois poemas seguintes — “Outra Dúvida” e “Circunstância” — apareceram originalmente do livro O Chão Batido, de 1963. Neles, as breves palavras convidam à reflexão. Por que o amor pode ser confundido com um pedido de socorro? Qual desencanto tão profundo leva o sujeito lírico a pensar (sem querer, quase escrevo “penar”) que os outros estão a rir dele e a chorar por ele?

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Nos poemas de Eunice Arruda nunca se encontra uma cena edulcorada, uma história que termina em conforto e idílio. Nada disso: ali reinam a inquietação, o pé-atrás, a desconfiança em relação ao que virá. Um resumo marcante desse espírito é dado pelo curtíssimo “Sem Saída”: “A porta da / vida / não tem chave // Se tem / não abre”.

Em “Erro”, reafirma-se o sentimento de que pisamos em terreno inadequado, indigno de confiança: “Edifiquei minha / casa sobre a / areia”. Em “Aspecto” a autora monta uma falsa tautologia: “A maturidade / chega // com a maturidade”. São poemas rasos à primeira vista e bastante irônicos — às vezes, sarcásticos — quando considerados em sua verdadeira dimensão.

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Os epigramas “Observando”, I e II, são outros exemplos da lâmina afiada com que Eunice Arruda trabalha sua poesia. No boletim n. 406, incluí “Observando I” como um “poema de tirar o fôlego”. Lá escrevi: “Com duas frases muito breves, a poeta faz uma confirmação taciturna. Nos três primeiros versos, afirma que existem as tréguas (referindo-se, com certeza, aos embates da vida). Até aqui, uma afirmação positiva e confiante. Mas na última estrofe vem a verdade: a suspensão das hostilidades só persiste enquanto se afiam as facas”.

Em “Observando II”, predomina o mesmo tom taciturno, que combina ironia com inquietação. O clima sombrio avança para o texto “Ruindo”, no qual a infelicidade compõe as pilastras de uma casa que está desabando. Todos os poemas citados acima, desde “Sem Saída”, foram publicados originalmente no livro Os Momentos, de 1981.

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O texto “As Poetisas” é o mais longo da miniantologia ao lado. Aqui, Eunice Arruda fala das poetas — que “dão poemas / filhos / sombra / e outras possibilidades de abrir / clareiras na floresta”. Mas os homens devem saber, informa, que elas não podem ser confundidas com “mulher”. Este poema vem do livro À Beira, de 1999.

No poema “Início”, a desconfiança se mantém em guarda: “Em cada encontro / há um / adeus”. Já em “Pergunta” surge, mais uma vez, uma indagação de aparência redundante mas que conduz à reflexão. Por fim, em “Finados”, a filha visita o túmulo da mãe. A síntese é extrema. Embora retrate um momento de forte emoção, as palavras (como sempre, mínimas) são secas e não aparentam carregar qualquer sentimento. Tudo mentira. O poeta é um fingidor.

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Paulista de Santa Rita do Passa Quatro, Eunice Carvalho de Arruda fez o curso de Serviço Social na PUC-SP, onde também pós-graduou-se em Comunicação e Semiótica. Ativista da poesia, participou do movimento Poetas na Praça nos anos 1970 e foi diretora da União Brasileira de Escritores. A autora participou de numerosas antologias, no Brasil e no exterior, coordenou projetos de divulgação poética e organizou oficinas literárias. O trabalho de Eunice já apareceu aqui no poesia.​net n. 172.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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LANÇAMENTO

A Natureza Íntima da Água
• Carlos Augusto Pereira

Carlos Pereira - A natureza íntima da águaCarlos Augusto Pereira lança a coletânea de poemas A Natureza Íntima da Água, livro que sai pela Haikai Editora, de São Paulo.

Quando:
Sábado, 30/11/2019,
das 13h às 17h

Onde:
Biblioteca Pública Viriato Correa
Rua Sena Madureira, 298
Metrô Vila Mariana
São Paulo, SP


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Sem conforto nem idílio


• Eunice Arruda


              



Zinaida Evgenievna Serebriakova - Portrait of a young woman-1915
Zinaida Evgenievna Serebriakova, russa, Retrato de uma jovem (1915)


PROPÓSITO

Viver pouco mas
viver muito
Ser todo o pensamento
Toda a esperança
Toda a alegria
ou angústia — mas ser

Nunca morrer
enquanto viver


ACIDENTE

Uma mulher caiu na rua
ninguém viu

Pensa que não caiu


    Do livro É Tempo de Noite (1960)





Zinaida Evgenievna Serebriakova - Podrtrait of Bertha Popoff in a red shawl-1940
Zinaida Serebriakova, Bertha Popoff com um xale vermelho (1940)


OUTRA DÚVIDA

Não sei se é
amor

ou

minha vida que pede
socorro


CIRCUNSTÂNCIA

Se alguém ri neste momento
ri
de mim

Se alguém chora neste momento
chora
por mim


    Do livro O Chão Batido (1963)





Zinaida Evgenievna Serebriakova - Moroccan woman-1932
Zinaida Serebriakova, Marroquina com vestido cor-de-rosa (1932)


SEM SAÍDA

A porta da
vida
não tem chave

Se tem
não abre


ERRO

Edifiquei minha
casa sobre a
areia

Todo dia recomeço


ASPECTO

A maturidade
chega

com a maturidade




Zinaida Evgenievna Serebriakova - Elena-Braslavskaya-1934
Zinaida Serebriakova, Elena Braslavskaya (1934)


OBSERVANDO - I

sim

as horas de trégua

Quando se afiam
as facas


OBSERVANDO - II

o pior momento:

o cego enxerga
melhor que o
guia


RUINDO

a casa está ruindo
Mesmo sendo
de pedras
a in
fe
li
ci
dade
contaminou os alicerces


    Do livro Os Momentos (1981)





Zinaida Evgenievna Serebriakova - portrait-of-a-a-cherkesovoy-benoit-1938.jpg
Zinaida Serebriakova, A.A. Cherkesovoy-Benoit (1938)


A TERRA É REDONDA

Se corro corro
o risco de
chegar

Ao mesmo lugar


    Do livro Mudança de Lua (1986)



AS POETISAS

Elas se amparam

Em papéis
palavras
no brilho
Faca cortando as águas

Os homens
tentam entendê-las
com abraços mágicos
colares
Elas dão poemas
filhos
sombra
e outras possibilidades de abrir
clareiras na floresta

Os homens riscam suas peles
com carinhos beijos
profundos

Mas
elas se amparam
estão
sempre atentas
à bifurcação dos caminhos
à mudança de lua

Os homens as confundem, às
vezes
com mulher


    Do livro À Beira (1999)





Zinaida Evgenievna Serebriakova - self-portrait-with-daughters-1921
Zinaida Serebriakova, Autorretrato com filhas (1921)


INÍCIO

Todo dia pise

Um degrau de
cada
vez

Todo dia lembre

Em cada encontro
há um
adeus


PERGUNTA

o que
acontece
quando

nada acontece


FINADOS

Agachada
no
chão

Limpa o
nome
a data

Agachada
no
chão

Alisa o rosto da mãe


    Do livro Tempo Comum (2015)






poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019



Eunice Arruda
•   in Visível ao Destino - Obra Completa e Inéditos
     Organização: André Arruda M Cesar [arrudA]
     Patuá, São Paulo, 2019
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* Francisco Carvalho, “Tanatologia”, in Rosa dos Eventos (1982)
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* Imagens: obras de Zinaida Evgenievna Serebriakova (1884-1967), pintora russa