Número 462 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 24 de março de 2021

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«Vamos, todos, brincar de cacto / na areia da nossa tristeza» (Cassiano Ricardo) *

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Ricardo Aleixo
Ricardo Aleixo



Amigas e amigos,

O poeta mineiro Ricardo Aleixo (Belo Horizonte, 1960) já esteve aqui nesta página nas edições n. 364, de 2016, e n. 108, de 2005. Ele retorna agora, trazido pelo livro Pesado Demais para a Ventania, antologia lançada em 2018 pela editora Todavia.

Alguns poemas constantes nessa antologia já apareceram aqui nas edições citadas acima, extraídas dos livros originais. Agora, a escolha da pequena amostra de textos ao lado foi feita conforme um critério especial. Selecionei sete poemas nos quais aparecem pessoas e entidades destacadas por Ricardo Aleixo.

O primeiro poema, “Nanã”, é um oriki, uma saudação ou louvação a esse orixá feminino, Nanã Buruquê, associado às águas paradas, pântanos e terras úmidas. Conforme a lenda, Nanã retirou uma porção de barro do fundo do lago onde morava, material com o qual foi feito o homem. No texto, Ricardo Aleixo faz referências a essas propriedades de Nanã, a “avó do universo”, a “mãe do segredo / do mundo”, e também cita, mais de uma vez, as matérias primordiais “água” e “lama”.

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O poema seguinte, “Homens”, homenageia quatro pessoas deste mundo. Quatro brasileiros. Primeiro, o artista plástico cearense José Leonilson Bezerra Dias (1957-1993). Depois, o também artista sergipano Arthur Bispo do Rosário Paes (1909 ou 1911-1989); o cangaceiro pernambucano Lampião (Virgulino Ferreira da Silva, 1898-1938); e, por fim, o marinheiro gaúcho João Cândido Felisberto (1880-1969), o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata, em 1910. O ponto comum entre os quatro constitui a pedra angular do poema: apesar das origens e destinos bem diferentes, todos eles bordavam.

Um detalhe: “João Cândido / punha a República / no curé”. O que é isso? Não adianta recorrer aos dicionários tradicionais. “Estar no curé” é expressão do norte de Minas, pertencente ao linguajar “baianeiro”. Significa ficar sem saída. Foi o que os marinheiros revoltosos fizeram com a república, que teimava em aplicar no dorso deles as mesmas torturas antes infligidas aos negros escravizados.

A propósito, se vocês tiverem curiosidade, leiam o artigo “Os bordados de João Cândido”, do historiador José Murilo de Carvalho, publicado na revista Manguinhos em outubro de 1995 e disponível aqui.

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No poema “Álbum de Família”, os personagens em ação são a linhagem patriarcal do próprio poeta: pai, avô, bisavô. Já em “Rainha Onça” o palco se abre para que entre em cena a cantora Elza Soares. “Canto / sem pedir / licença”, diz ela no texto, onça “desde nascença”.

O próximo poema, “Música Mesmo”, homenageia outro expoente da música popular: Milton Nascimento. Para o poeta, apenas com o som que sai da boca do cantor e compositor carioca-mineiro, “ele toca / o oco / da vida / por dentro”. Mas o elogio não para aí: da terra até o céu, a voz sublime do cantautor de “Maria Maria” age como se, drummondianamente, “‘palmilhasse / vagamente’ / as estradas / deste mundo”.

Em “Cantiga de Caminho”, continuamos no campo musical. Aleixo conta que escreveu esse poema depois de ler uma entrevista da cantora paulistana Virgínia Rosa, na qual ela dizia “ser filha de pais mineiros”. O texto, depois, foi musicado pelo violeiro, compositor e cantor mineiro Chico Lobo e gravado por ele mesmo, com a participação de Virgínia Rosa, no disco Caipira no Mundo (2011). Você pode ouvir a canção aqui, no YouTube.

Vem, por último, o poema “Teofagia”. Neste, a pessoa em foco é o próprio Ricardo Aleixo, criança, todo paramentado para a primeira comunhão. O poema parece construído a partir de uma foto registrada na igreja.

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É fácil perceber que o poeta Ricardo Aleixo constrói seus poemas sempre com alicerces reconhecíveis. Enquanto eu escrevia este texto, fiz uma busca na internet e encontrei um artigo assinado por Carlos Francisco Moraes e publicado na Revista do SELL, o Simpósio de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, UFTM, em Uberaba-MG.

Percebi que o articulista diz exatamente o que eu pretendia dizer para concluir o texto deste boletim: “Em larga medida, a poesia de Ricardo Aleixo se faz de lugares e de pessoas. Seus poemas, invariavelmente, citam nomes, cidades do Brasil e do estrangeiro, bairros de Belo Horizonte, paisagens, modos de viver. Nesse conjunto, avulta, particularmente, todo um abecedário de personagens da história dos negros do Brasil. Ou de negros que fizeram e fazem a história do Brasil. Acrescidos, é verdade, de outras personagens que ilustram, nos dois sentidos do termo, a diáspora africana pelo mundo”. [O texto completo encontra-se aqui.]

Sem dúvida, o assentamento da poesia de Aleixo sobre “lugares e pessoas”, como salienta Carlos Francisco Moraes, é exatamente o que me levou a selecionar os poemas ao lado. Em certo sentido, percebo agora, esses mesmos traços caracterizam os poemas apresentados no boletim n. 364, quase cinco anos atrás.

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Poeta, artista gráfico, músico, cantor, performer e editor, Ricardo Aleixo nasceu em Belo Horizonte em 1960. Inquieto, experimentador, é audidata e estreou em 1992 com o livro Festim. Desenvolve múltiplas atividades como artista que combina a poesia com outras formas de expressão, como a música e a dança. Entre seus principais trabalhos de poesia encontram-se os títulos Pesado Demais para a Ventania (2018); Mundo Palavreado (2013); Modelos Vivos (2010); e Trívio (2002).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Gentes e entes de Aleixo


• Ricardo Aleixo


              

Rafal Olbinski - Dancing with horses
Rafal Olbinski, pintor polonês, Dançando com cavalos


NANÃ

Mãe sem marido,
avó do universo.
Senhora da alvura.
Nanã, a de rosto
sempre coberto.
Ó poderosa
dona dos cauris,
filha do grande pássaro Atioró.
Água.
Lama.
Morte.
Mãe do segredo
do mundo.
O úmido.
O que flui.
Água.
Lama.
Filhos.
Teus gestos
lentos
no fundo
da água escura.



Rafal Olbinski - instinctive.change.of.the.familiar.subject-1994
Rafal Olbinski, Mudança instintiva do assunto familiar (1994)


HOMENS

Leonilson
pintava
e
bordava.

Bispo do Rosário
colecionava
delírios
e bordava.

Lampião
tocava o terror
no sertão
e bordava.

João Cândido
punha a República
no curé
e bordava.



ÁLBUM DE FAMÍLIA

Meu pai viu Casablanca três vezes (duas
no cinema e uma na TV). Meu avô
trabalhou na boca da mina. Meu bisavô
foi, no mínimo, escravo de confiança.



Rafal Olbinski - the.love.tales-rain-2016
Rafal Olbinski, Contos de amor - Chuva (2016)


RAINHA ONÇA

Sou Elza.
Sou onça.

Canto
sem pedir
licença.

Sou onça.
Sou Elza.

Eu onço
desde
nascença.



Rafal Olbinski - the.love.tales-sailing.ship-2016
Rafal Olbinski, Contos de amor - Navio a vela (2016)


MÚSICA MESMO

música
música mesmo
é milton
quem faz

só com
o som
que sai
da sua boca
ele toca
o oco
da vida
por dentro

do centro
da terra
até o breu
do céu
sem deus
que pesa
imenso
sobre nós

como se apenas
“palmilhasse
vagamente”
as estradas
deste mundo
com a voz



Rafal Olbinski - memories.of.hampton-1996
Rafal Olbinski, Memórias de Hampton (1996)


CANTIGA DE CAMINHO

Sou filho de mãe mineira
meu pai é de Minas Gerais
sei rezar latim pro nobis
sou primo do preto Brás

Sou filho de pai mineiro
mamãe é de Minas Gerais
vou vivendo como vivo
faço o que ninguém mais faz

Desde menino eu misturo
o antes, o agora e o depois
sei somar zero com zero
e ainda divido por dois

Desde menino eu misturo
o antes, o agora e o depois
sempre que posso eu passo
o carro à frente dos bois

Sou filho de pai mineiro
mamãe é de Minas Gerais
sou rosa e pedra no caminho
sou capaz de guerra e paz

Sou filho de mãe mineira
meu pai é de Minas Gerais
dou volta e meia no mundo
e o mundo não acaba mais



Rafal Olbinski - nocturne.in.e.flat.major.jpg
Rafal Olbinski, Noturno em mi bemol maior


TEOFAGIA

Aqui, eu —
consumada falha
de papai e mamãe:
meia ¾ (acho
que de menina),
uma palma
e uma folha
de papel na mão,
minutos depois
de deglutir
Deus, à guisa
de primeira
comunhão.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Ricardo Aleixo
      •  Todos os poemas:
      in Pesado Demais para a Ventania
      Todavia, São Paulo, 2018
_____________
* Cassiano Ricardo, "O Cacto", in João Torto e a Fábula (1954)
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* Imagens: obras do pintor e ilustrador polonês Rafal Olbinski (1943-), que define sua arte como “surrealismo poético”. Olbinski vive nos EUA.