Número 478 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 24 de novembro de 2021

poesia.net header

«Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!» (Alberto Caeiro) *

Compartilhe pelo WhatsApp

facebook 
Ana Cecília Bastos
Ana Cecília de Sousa Bastos



Amigas e amigos,

Nesta edição, o poesia​.net destaca a poesia da professora baiana Ana Cecília de Sousa Bastos. A autora já esteve aqui no boletim n. 93, de 2004. Desta vez, ela retorna após a recente publicação de A Impossível Transcrição, obra que sai pela Editora Mondrongo, em segunda edição revista e ampliada. A publicação original é de 2007.

Criadora de uma poesia marcadamente pessoal e confessional, a poeta se mostra uma profunda perscrutadora das sutilezas da vida e dos próprios sentimentos. Esses são traços que se observam em suas outras coletâneas e também estão presentes em A Impossível Transcrição. Para esta edição, selecionei cinco poemas do livro.

•o•

Abre a seleção o poema “Noite em Brasília”. A poeta parece ter escrito este texto inspirada por uma passagem na capital federal. A arquitetura da cidade e as vastidões do Plano Piloto brasiliense devem ter servido como ponto de partida para uma reflexão existencial. Retirei do texto para título deste boletim a expressão “Esplanada de mistérios”.

Vem a seguir o poema “Revestir Palavras de Abstrato”. Para a autora, vivemos num “mundo de palavras / (...) / atravessado pelo concreto / contaminado de vida”. Então ela acredita que a procura da poesia pode ser feita mediante a fuga dessa concretude, rumo a certa volatilidade. Para isso é preciso vestir as palavras com roupas de abstração.

Em “Antes que me esqueça”, a poeta se põe a fazer uma reflexão sobre a vida pessoal. Aos 65 anos, percebe que detém em seu patrimônio temporal mais vida passada que futura. Conclui, portanto, que seu lugar é um movimento entre a poesia e o cotidiano.

•o•

No poema seguinte, “Linhas”, a autora faz nova meditação existencial. Reflete sobre sua necessidade de “desfiar palavras e imagens” e descobre: “há novos olhos em mim”. Talvez ela queira referir-se aos novos ângulos de visão que a experiência nos confere: a sabedoria trazida pelo tempo.

O último poema da minisseleção ao lado é “Esfinge”. Nele o sujeito lírico discorre sobre como e por que escreve. “Na estrutura de meus poemas vejo a estrutura de meu modo de estar na vida (...)”. Aparentemente, isso define o jogo e não há mais dúvidas. Contudo, o texto dá uma reviravolta e a pessoa se define como uma esfinge, a palavra-título. Assim, o que parecia claramente delineado retorna à indefinição.

•o•

Psicóloga e professora aposentada da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Católica de Salvador, Ana Cecília de Sousa Bastos (Salvador, 1954), esccreve desde adolescência. Em poesia, estreou publicamente com o livro Uma Vaga Lembrança do Tempo (Prêmio Copene, 1999). Publicou depois, entre outros livros, A Impossível Transcrição (1ª ed., 2007; 2ª ed. ampliada, 2021) e Escritos Extraídos do Silêncio (2015).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


•o•


19 ANOS

Conforme indica o cabeçalho desta edição, o poesia.​net está entrando em seu 20° ano de atividade. Em 12 de dezembro, o boletim completa 19 anos.


•o•



Curta o poesia.​net no Facebook:

facebook


•o•


Compartilhe o poesia.​net no Facebook, no Twitter e no WhatsApp

facebook

Compartilhe o boletim nas redes Facebook, Twitter e WhatsApp. Basta clicar nos botões logo acima da foto do poeta.



Esplanada de mistérios


• Ana Cecília de Sousa Bastos


              



Marcos Beccari - Aquarela
Marcos Beccari, pintor paulistano, Aquarela


NOITE EM BRASÍLIA

A silhueta na noite.
Esplanada de mistérios.
Quem somos?
Que dizem de nós esses ângulos?
Chuva, infinito, solidão.
Nuvens e rotações, ângulos e vieses,
aéreo delírio.
E esse anjo sem face,
desfigurado barroco
em mesa de hotel.



Marcos Beccari - Aquarela
Marcos Beccari, Aquarela


REVESTIR PALAVRAS DE ABSTRATO

Vivo em um mundo de palavras.
Substrato volátil,
atravessado pelo concreto,
contaminado de vida.

Exercício necessário:
revestir palavras de abstrato,
mesmo se dentro contêm
carne e sangue.

Usar as palavras
para ocultar,
ainda que seja este um vão exercício,
ainda que se desfralde,
como um lençol transparente sobre a carne nua,
o puro sentimento,
à minha revelia.

Escrever,
para além do registro da vida
quando intensa e surpreendente.
Que se impõe e me submete.
Buscar a poesia,
reencontrar a forma dessa coisa oculta.
No fragmento do cotidiano.
No mais inconfessável.
Nessa ficção.



Marcos Beccari - Aquarela
Marcos Beccari, Aquarela


ANTES QUE ESQUEÇA

Antes que esqueça:
caminho na praia
e penso que a poesia é a revelação cifrada do inconfessável.
Já não tenho tempo,
há mais vida atrás que diante de mim.
Mover-me entre a poesia e o cotidiano,
tão valioso quanto mais me escapa,
é o lócus de minha voz aos 65.



Marcos Beccari - Marielle Franco
Marcos Beccari, Marielle Franco


LINHAS

Li em algum lugar esta frase de Alain: o invisível nos arrasta
e os deuses mais terríveis permanecem ocultos.
Assim os dias, suas linhas paralelas que mal se tocam.
Trajetórias oficiais e suas sombras.
Todos os lugares da alma.
E assim vou a desfiar palavras e imagens.
Há uma tela interior onde se projetam palavras
e são infinitas e não se interrompem embora, mesmo
quando, entre parênteses.
E esta sou eu e há novos olhos em mim,
novo toque e ser.



Marcos Beccari - Aquarela
Marcos Beccari, Aquarela


ESFINGE

Não sei do poema, de seu doce amargo.
De suas palavras cindindo o meu coração,
me fazendo refém de emoções.
Nostálgica do fluxo que molda palavras e brinca com elas,
na imprecisão vertiginosa do texto,
qualquer que seja.

...pois esqueço que escrever é dor; ato visceral do qual a marca no papel ou na tela é mero reflexo. Não sei em que espaços me disfarço tanto, disfarço essa tanta consciência de coisas e gestos e sentimento, escolho essa inércia que me faz morta.

Sonho a delicadeza (utopia) enquanto em mim a poesia é presença: o ofego, o suspiro, o entrecortado afeto. Lente que distorce a superfície do dia e faz o viver fluido total, ferida aberta. É tão visceral que sonho a delicadeza, as puras imagens, o imagético delírio, a geometria das palavras. Um descompromisso? Uma fuga, sim.

Na estrutura de meus poemas vejo a estrutura do meu modo de estar na vida, de pressentir de longe sua fatia mais densa, apetitosa e verdadeira.

Enquanto isso as palavras fogem e sou esfinge.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Ana Cecília de Sousa Bastos
      in A Impossível Transcrição  2ª ed. revista e ampliada
      Apresentação de Assis Lima
      Posfácio (prefácio à 1ª ed. - 2007): Francisco Carvalho
      Mondrongo, Itabuna-BA, 2021
_____________
* Alberto Caeiro [Fernando Pessoa], in O Guardador de Rebanhos
______________
* Imagens: aquarelas do paulistano Marcos Beccari (1987-), artista plástico
  e professor da Universidade Federal do Paraná