Amigas e amigos,
Estamos de volta. Este é o primeiro boletim de 2021. Infelizmente, retornamos ainda num momento de extrema dificuldade. Quando nos despedimos, no final do ano
passado, falávamos em quase 200 mil mortos pela pandemia. Agora, esse número já saltou para quase 250 mil. Tristeza profunda. Vacina já.
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Nos últimos dias, andei revisitando a obra do poeta cearense Francisco Carvalho (1927-2013) e dela extraí uma nova seleção de poemas. Decidi então abrir
os trabalhos do ano com a voz desse poeta, já conhecido pelos leitores do
boletim. Carvalho já esteve aqui nas edições poesia.net
n. 400 (2018),
n. 287 (2013),
n. 212 (2007) e
n. 102 (2005).
Nesta nova incursão na obra do poeta Francisco Carvalho, todos os poemas foram extraídos da antologia Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos, publicada
em 2004 pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC).
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O primeiro texto de nossa pequena antologia é o soneto “Filhos do Mar”, que apareceu originalmente no livro Galope de Pégaso (1994). Em primeiríssimo lugar,
o que me encanta neste poema é o ritmo, que flui como água cantante, fácil de ler, fácil de ouvir. A ideia central é a de que somos seres marinhos: “Somos do mar
e ao mar, que nos inventa, / nos ligam seios, restos de placenta”.
O poema seguinte, “Biografia”, constitui uma peça breve que parece dar notícia de uma pessoa real: “Chamava-se Gertrudes Luzia Vésper / Antígona dos Mártires”.
Como se vê, um nome longo que ocupa os dois versos iniciais. O poeta destaca o curioso pedido feito pela nonagenária Gertrudes bem “na hora de morrer”.
Neste poema observa-se a afiada capacidade do autor de observar o cotidiano e dele extrair pequenos acontecimentos, brilhantes pílulas de
poesia. É a velha lição do modernismo, proposta, por exemplo, por Manuel Bandeira, em textos como “Poema retirado de uma notícia de jornal” ou
“Tragédia Brasileira” (leia-os aqui).
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Segue-se o poema “26”, que faz parte do livro Exílios do Homem, de 1997, no qual todos os títulos são numerados. Neste texto encontra-se o poeta brincalhão,
que solta as rédeas da criatividade e segue o fluxo das rimas, mesmo quando aparentemente um verso não guarda nenhum parentesco com o que vem a seguir:
“nada sei das ágoras / nem do Teorema de Pitágoras / nada sei do esqueleto / ou das vértebras do soneto”. Mas o resultado final é algo que fecha uma ideia precisa.
Em “Os Antepassados”, o sujeito lírico se põe a conversar com seus avós, apresentados em fotografias antigas. “Eventualmente converso com eles / mas sempre os
encontro distraídos”. Este poema vem do livro Girassóis de Barro, de 1997.
No poema “Aridez”, o poeta constrói uma espécie de litania baseada na repetição do adjetivo “árido”, com variações de número e gênero. A sequência é monótona,
mas dentro dela se encontra uma rápida enumeração de coisas e situações que dão ao texto uma atmosfera de sonho, que vai do “madrigal” ao “sorriso raiado de sangue”,
do “cântico dos galos” ao “adeus dos mortos”. E tudo isso é, inapelavelmente, árido.
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O poema “Viagem no Tempo” explora os mesmos territórios que aquele anterior, das conversas com os antepassados. Aqui, a sintonia dos tempos de outrora se dá mediante a
visualização dos escombros da antiga casa familiar. E a conclusão dói: “Dos ponteiros do relógio / pingam as gotas das horas. // Por todos os cantos / da casa a memória sangra”.
Agora, o último poema da série, “Anatomia do Nada”. Aqui, mais uma vez, o poema se envolve numa longa sequência de especulações, todas em tom interrogativo:
“o nada é macio ou áspero?” (...) “o nada é coisa sem pluma?” (...) “o nada é eterno ou / não passa de coisa alguma?”
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Nascido em Russas-CE, em 1927, Francisco Carvalho escreveu mais de 30 livros de poesia, somente poesia. Estreou com Cristal da Memória em 1955
e produziu em ritmo incansável até a publicação de Mortos Não Jogam Xadrez (2008). O poeta faleceu em 2013.
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Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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