Número 460 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

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«errata: onde / se lê: eros / leia-se: erros / ou vice-versa» (Luiz Roberto Guedes) *

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Francisco Carvalho
Francisco Carvalho



Amigas e amigos,

Estamos de volta. Este é o primeiro boletim de 2021. Infelizmente, retornamos ainda num momento de extrema dificuldade. Quando nos despedimos, no final do ano passado, falávamos em quase 200 mil mortos pela pandemia. Agora, esse número já saltou para quase 250 mil. Tristeza profunda. Vacina já.

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Nos últimos dias, andei revisitando a obra do poeta cearense Francisco Carvalho (1927-2013) e dela extraí uma nova seleção de poemas. Decidi então abrir os trabalhos do ano com a voz desse poeta, já conhecido pelos leitores do boletim. Carvalho já esteve aqui nas edições poesia.​net n. 400 (2018), n. 287 (2013), n. 212 (2007) e n. 102 (2005).

Nesta nova incursão na obra do poeta Francisco Carvalho, todos os poemas foram extraídos da antologia Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos, publicada em 2004 pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC).

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O primeiro texto de nossa pequena antologia é o soneto “Filhos do Mar”, que apareceu originalmente no livro Galope de Pégaso (1994). Em primeiríssimo lugar, o que me encanta neste poema é o ritmo, que flui como água cantante, fácil de ler, fácil de ouvir. A ideia central é a de que somos seres marinhos: “Somos do mar e ao mar, que nos inventa, / nos ligam seios, restos de placenta”.

O poema seguinte, “Biografia”, constitui uma peça breve que parece dar notícia de uma pessoa real: “Chamava-se Gertrudes Luzia Vésper / Antígona dos Mártires”. Como se vê, um nome longo que ocupa os dois versos iniciais. O poeta destaca o curioso pedido feito pela nonagenária Gertrudes bem “na hora de morrer”.

Neste poema observa-se a afiada capacidade do autor de observar o cotidiano e dele extrair pequenos acontecimentos, brilhantes pílulas de poesia. É a velha lição do modernismo, proposta, por exemplo, por Manuel Bandeira, em textos como “Poema retirado de uma notícia de jornal” ou “Tragédia Brasileira” (leia-os aqui).

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Segue-se o poema “26”, que faz parte do livro Exílios do Homem, de 1997, no qual todos os títulos são numerados. Neste texto encontra-se o poeta brincalhão, que solta as rédeas da criatividade e segue o fluxo das rimas, mesmo quando aparentemente um verso não guarda nenhum parentesco com o que vem a seguir: “nada sei das ágoras / nem do Teorema de Pitágoras / nada sei do esqueleto / ou das vértebras do soneto”. Mas o resultado final é algo que fecha uma ideia precisa.

Em “Os Antepassados”, o sujeito lírico se põe a conversar com seus avós, apresentados em fotografias antigas. “Eventualmente converso com eles / mas sempre os encontro distraídos”. Este poema vem do livro Girassóis de Barro, de 1997.

No poema “Aridez”, o poeta constrói uma espécie de litania baseada na repetição do adjetivo “árido”, com variações de número e gênero. A sequência é monótona, mas dentro dela se encontra uma rápida enumeração de coisas e situações que dão ao texto uma atmosfera de sonho, que vai do “madrigal” ao “sorriso raiado de sangue”, do “cântico dos galos” ao “adeus dos mortos”. E tudo isso é, inapelavelmente, árido.

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O poema “Viagem no Tempo” explora os mesmos territórios que aquele anterior, das conversas com os antepassados. Aqui, a sintonia dos tempos de outrora se dá mediante a visualização dos escombros da antiga casa familiar. E a conclusão dói: “Dos ponteiros do relógio / pingam as gotas das horas. // Por todos os cantos / da casa a memória sangra”.

Agora, o último poema da série, “Anatomia do Nada”. Aqui, mais uma vez, o poema se envolve numa longa sequência de especulações, todas em tom interrogativo: “o nada é macio ou áspero?” (...) “o nada é coisa sem pluma?” (...) “o nada é eterno ou / não passa de coisa alguma?”

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Nascido em Russas-CE, em 1927, Francisco Carvalho escreveu mais de 30 livros de poesia, somente poesia. Estreou com Cristal da Memória em 1955 e produziu em ritmo incansável até a publicação de Mortos Não Jogam Xadrez (2008). O poeta faleceu em 2013.

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Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Viagem no tempo


• Francisco Carvalho


              

Pablo Picasso - Portrait de femme-1938
Pablo Picasso, espanhol, Retrato de mulher (1938)


FILHOS DO MAR

Somos do mar e ao mar regressaremos
quando passarem todos esses anos.
Nossas mãos são vestígios desses remos
de argonautas de antigos oceanos.

Somos do mar, das conchas, dos sargaços.
O mar nos rememora e nos inventa.
Ao mar estão ligados nossos braços
como se fossem restos de placenta.

Somos do mar, dos ventos, das procelas
dos bons augúrios, dos momentos maus.
Nossos corpos são mastros ou são velas
singrando as rotas de perdidas naus.

   Somos do mar e ao mar, que nos inventa,
   nos ligam seios, restos de placenta.

    De Galope de Pégaso (1994)





Pablo Picasso - femme.avec.une.fleur-1932
Pablo Picasso, Mulher com uma flor (1932)


BIOGRAFIA

Chamava-se Gertrudes Luzia Vésper
Antígona dos Mártires.
Viveu noventa e dois anos
com lucidez nos olhos
e mocidade no coração.
Na hora de morrer
pediu que lhe trouxessem
chá com torradas.
— Outra das formas de dizer adeus.

     De Galope de Pégaso (1994)





Pablo Picasso - marie-therese.walter.au.chapeau-1936
Pablo Picasso, Marie Therese Walter com chapéu (1936)


26

não sou adivinho
nada sei do tempo e do seu linho
nada sei das ágoras
nem do Teorema de Pitágoras
nada sei do esqueleto
ou das vértebras do soneto
nada sei do filho pródigo
nem das malícias do código
nada sei da morte
nem quando beberei do seu vinho.

     De Os Exílios do Homem (1997)





Pablo Picasso - la.lecture-1932
Pablo Picasso, Leitura (1932)


OS ANTEPASSADOS

Os antepassados permanecem vivos
e volúveis na memória das fotografias.
Às vezes nos olham com desdém
outras vezes zombam de nós
com gestos e gargalhadas de areia.

Eventualmente converso com eles
mas sempre os encontro distraídos.
Os olhos fixos no meridiano
que separa a curvatura da terra
dos despenhadeiros da morte.

Os antepassados me parecem ávidos.
Alguns cofiam os bigodes com
a sensualidade de um bichano azul.
Outros parecem distantes, extraviados
na poeira de zinco das galáxias.

     De Girassóis de Barro (1997)





Pablo Picasso -portrait.de.dora.maar-1937
Pablo Picasso, Retrato de Dora Maar (1937)


ARIDEZ

Árido o pássaro
árida a cicatriz na pedra
árido o vento
árido o tropel dos escorpiões bailarinos
árida a simetria da luz
árido o céu
árido o silêncio de Deus
árido o madrigal
árido o cio da cobra
árido o lamento da porta aberta
árido o amor dos homens
árida a madrugada
árido o cântico dos galos nas tardes de estio
áridas as árvores de copas de mármore
áridos os seios das mulheres
árido o ventre
árida a palidez do rosto
árido o fel do sorriso raiado de sangue
áridos os olhos
árido o galope das nuvens degoladas
árido o sabor da treva
árida a agonia da terra demolida
árido o esquecimento
árida a voz que diz adeus aos mortos.

     De Romance da Nuvem Pássaro (1998)





Pablo Picasso - buste.de.femme.au.chapeau-1938
Pablo Picasso, Busto de mulher com chapéu (1938)


VIAGEM NO TEMPO

Percorro a casa. Os claros
espaços dos antepassados.

As vigas. Os caibros. As telhas.
As vértebras das teias

de aranha. Por aqui
as serpentes dos pântanos

deixaram fragmentos
de astúcia e morfina.

Vestígios de borboletas
mortas vivem nas gavetas.

Dos ponteiros do relógio
pingam as gotas das horas.

Por todos os cantos
da casa a memória sangra.

     De Centauros Urbanos (2003)





Pablo Picasso - femme.au.chpeau.vert-1939
Pablo Picasso, Mulher com chapéu verde (1939)


ANATOMIA DO NADA

O nada é branco, suave, agudo?
começo ou fim de tudo?
o nada é alfa ou ômega?
punhal amolado ou faca cega?
o nada é macio ou áspero?
incolor ou escuro?
de que se faz o nada?
de que se urde a sua teia?
dos fios do novelo do absurdo?
que coisa é o nada?
o nada é coisa sem pluma?
tudo que se desintegra
no vazio? ou a cisma
do cisne que nada no rio?
o nada flui do nada
ou jorra do avesso de tudo?
o nada é matéria ao
quadrado da velocidade
da luz? energia que congrega
os fragmentos do cosmos?
pólen do salto do puma
o nada é eterno ou
não passa de coisa alguma?

     De Centauros Urbanos (2003)






poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Francisco Carvalho
      •  Todos os poemas:
      in Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos
      Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004
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* Luiz Roberto Guedes, "Errata", in Calendário Lunático (1996)
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* Imagens: quadros do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973)