Fernando Pessoa
Amigas e amigos,
Quem dá uma olhada, mesmo
superficial, na obra poética do lisboeta Fernando Pessoa (1888-1935) percebe facilmente que Álvaro
de Campos é de longe seu heterônimo mais prolífico. Verdadeiro alter ego, Campos é
o mais Pessoa de todas as três principais sombras de Pessoa.
No baú
dos escritos até recentemente inéditos do poeta, essa característica se mantém.
Tanto que a portuguesa Teresa Rita Lopes, destacada pessoóloga e também poeta,
publicou em 1993 a edição crítica Álvaro de Campos - Livro de Versos, que revela
mais 79 poemas de Campos, além dos até então conhecidos.
Antes de Teresa
Rita, a brasileira
Cleonice Berardinelli, especialista em literatura portuguesa e estudiosa
pessoana, também havia publicado, em 1990, uma edição crítica dos Poemas de Álvaro de
Campos, contendo igualmente alguns textos inéditos.
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Quem é Álvaro de Campos?
Conforme a biografia traçada por Pessoa, Álvaro de Campos
nasceu em 1890, em Tavira, no extremo sul de Portugal. Engenheiro naval formado
em Glasgow, Escócia, nunca exerceu a profissão, por absoluta inconformidade com
a rotina de um local de trabalho e as miudezas da vida.
Após retornar
a Portugal, Campos conhece Alberto Caeiro, outro heterônimo de Pessoa, de quem se
torna discípulo. De Caeiro ele admira o objetivismo, a aversão à filosofia, a
percepção visual da realidade. "Creio no mundo como num malmequer, / Porque o
vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender...", ensina o mestre
Caeiro.
Homem das sensações — daí o termo “sensacionista” —,
o engenheiro Álvaro de Campos é futurista, vanguardista. É o heterônimo do
século XX, fascinado pela velocidade, pelas máquinas e a eletricidade.
Arrebatado, mostra-se ao mesmo tempo racional, lúcido e negativista.
Exuberante, impetuoso, hiperbólico, ele sofre a influência do americano Walt
Whitman e seu caudaloso livro-poema Folhas de Relva (1855). Num dos inéditos
encontrados por Cleonice Berardinelli, Campos garante: “Minha imaginação é um
Arco de Triunfo. / Por baixo dela passa toda a Vida”.
Um detalhe
interessante. Dos três heterônimos de Pessoa, só Caeiro morreu, aos 26 anos. Os
outros dois, Campos e Reis, sobreviveram ao seu criador. Isso, aliás, deu azo a
que José Saramago escrevesse o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984).
Quem leu o livro sabe que as últimas peripécias de Reis, conforme a ficção de
Saramago, ocorrem após o desaparecimento de Fernando Pessoa.
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Embora entre os traços característicos de Álvaro de Campos não se destaque o
bom humor, quero realçar neste boletim dois poemas atribuídos ao engenheiro
naval nos quais ele mostra certa disposição para a leveza e a brincadeira. Ambos
pertencem aos textos desentranhados da arca de Fernando Pessoa.
O
primeiro é “Ai, Margarida”, datado de 1927, que apresenta um diálogo mantido
entre Margarida e o namorado. Este pergunta e Margarida responde. Ele é um
sonhador, dado a promessas vazias e grandiosas, enquanto a moça tem os pés
firmemente plantados no chão. Um saboroso detalhe do poema é a nota que vem ao
final.
Ela dá a entender que alguém teria anotado esses versos, uma vez que o autor, o
engenheiro naval Álvaro de Campos, se encontrava em “estado de inconsciência
alcoólica”.
O outro texto é “Quando os povos da Dalmácia”, que não
traz data. Nele, Campos trabalha com rimas bem ao gosto dos simbolistas: em
ácia, écia, ícia, ócia. O resultado é uma história de total nonsense.
“Ai, Margarida” está no volume Álvaro de Campos – Livro de Versos, (1993),
de Teresa Rita Lopes. Já “Quando os Povos da Dalmácia” vem de Poemas de Álvaro
de Campos (1990), de Cleonice Berardinelli.
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Pensando bem, no início (antes de conhecer Alberto Caeiro), Campos até exibia
certa inclinação para o riso. No longo poema “Opiário”, um de seus primeiros,
escrito em 1914 “no Canal de Suez, a bordo”, ele confessava:
Eu, que fui
sempre um mau estudante, agora Não faço mais que ver o navio ir Pelo canal
de Suez a conduzir A minha vida, cânfora na aurora.
Mais adiante:
Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmolas às portas da Alegria.
E, por fim:
Não posso estar em parte alguma. A minha Pátria é onde
não estou. Sou doente e fraco. O comissário de bordo é velhaco. Viu-me
co'a sueca... e o resto ele adivinha.
Se não ria às escâncaras, o
engenheiro naval Álvaro de Campos pelo menos esboçava algum sorriso.
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Para completar o boletim, incluí mais dois poemas de Álvaro de Campos
extraídos do baú de Pessoa por meio do livro de Teresa Rita Lopes. Esses, no
entanto, não têm abertura para o riso: trazem o habitual humor sombrio do engenheiro.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
P.S.: Fernando Pessoa já esteve neste boletim outras vezes:
- poesia.net n. 22
- poesia.net n. 145
- poesia.net n. 250
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O sorriso de Álvaro de Campos
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Fernando Pessoa
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Almada
Negreiros, português, Retrato de Fernando Pessoa (1964)
AI, MARGARIDA
Ai, Margarida, Se eu te desse a minha vida, Que farias tu com ela?
— Tirava os brincos do prego, Casava c'um homem cego E ia morar para a
Estrela.
Mas, Margarida, Se eu te desse a minha vida, Que diria
tua mãe? — (Ela conhece-me a fundo.) Que há muito parvo no mundo, E
que eras parvo também.
E, Margarida, Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer? — Eu iria ao teu enterro, Mas achava que era um
erro Querer amar sem viver.
Mas, Margarida, Se este dar-te a
minha vida Não fosse senão poesia? — Então, filho, nada feito. Fica
tudo sem efeito. Nesta casa não se fia.
Comunicado pelo Engenheiro
Naval Sr. Álvaro de Campos em estado de inconsciência alcoólica.
1-10-1927
Almada Negreiros: como o artista
imaginava os três heterônimos. Da esq. para a dir.: Caeiro, Reis e Campos
(o eterno viajante)
QUANDO OS POVOS DA DALMÁCIA
Quando os povos da Dalmácia Fizeram guerra aos da Grécia Saiu
muita gente sécia Da casa do rei da Trácia. Houve disto grande
falácia, Lá para as bandas da Fenícia, Porém temendo malícia, De
gente tão pouco sócia, Lá se foram para a Beócia Para se curar da
icterícia.
s/ data
Almada Negreiros, Arlequim (1941)
TENHO ESCRITO MAIS VERSOS QUE VERDADE
Tenho escrito mais versos que verdade. Tenho escrito
principalmente Porque outros têm escrito. Se nunca tivesse havido
poetas no mundo, Seria eu capaz de ser o primeiro? Nunca! Seria um
indivíduo perfeitamente consentível, Teria casa própria e moral.
Senhora Gertrudes! Limpou mal este quarto: Tire-me essas ideias de
aqui!
15-10-1930 Data aposta, no verso da folha, a outro fragmento
de poema. (Observação de Teresa Rita Lopes)
Almada Negreiros, Estudo para
decoração de um teatro (1929)
SIM, ESTÁ TUDO CERTO
Sim, está tudo certo. Está tudo perfeitamente certo. O pior é
que está tudo errado. Bem sei que esta casa é pintada de cinzento Bem
sei qual é o número desta casa — Não sei, mas poderei saber, como está
avaliada Nessas oficinas de impostos que existem para isto — Bem sei,
bem sei... Mas o pior é que há almas lá dentro E a Tesouraria de
Finanças não conseguiu livrar A vizinha do lado de lhe morrer o filho.
A Repartição de não sei quê não pode evitar Que o marido da vizinha do
andar mais acima lhe fugisse com a cunhada... Mas, está claro, está tudo
certo... E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...
5-3-1935
Poema publicado pela Aguilar como de Fernando Pessoa, ele-mesmo.
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