Número 447 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 8 de julho de 2020

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«Porque os corpos se entendem, mas as almas não.» (Manuel Bandeira) *

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Graça Pires
Graça Pires



Amigas e amigos,

Na edição n. 416, em fevereiro de 2019, esta página recebeu o título “Versos sobre tela”. Ali juntei poemas de quatro autores escritos com inspiração em pinturas de artistas famosos.

Nesta edição, revisito o mesmo procedimento. Mas agora a abordagem é diferente: os poemas são de uma só autora e os quadros inspiradores também de um só pintor. Portanto, o que vemos no lado direito desta página resulta de uma parceria entre a poeta portuguesa Graça Pires e o pintor italiano Amedeo Modigliani (1884-1920).

Graça Pires teve a luminosa ideia de escrever um livro inteiro com poemas baseados em quadros do genial Modigliani. Entre as dezenas, quiçá centenas, de mulheres retratadas pelo artista, a poeta selecionou 40 e dedicou um poema a cada uma delas. Esses trabalhos estão reunidos em seu livro Fui quase todas as mulheres de Modigliani, publicado em 2017. Você pode ler/ver ao lado cinco duplas desses retratos-poemas.

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Esta edição do boletim foi organizada com a colaboração da poeta carioca Solange Firmino. Ela me recomendou a leitura dos poemas "modigliânicos" de Graça Pires, que estão disponíveis no site da autora lusa, Ortografia do Olhar. Daí me veio a ideia deste boletim.

Solange também me ajudou na seleção dos poemas e, amiga da autora, forneceu-me a foto dela que você vê no alto desta coluna.

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Poeta de impressionante fertilidade, Graça Pires (Figueira da Foz, Portugal, 1946) estreou em 1990 com o volume Poemas e tem dezenas de títulos publicados. Coleciona também um bom punhado de prêmios literários. Veja aqui a lista completa de obras e prêmios da autora. Graça Pires é licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Passemos aos poemas. O primeiro texto pinçado em Fui quase todas as mulheres de Modigliani foi “Jovem ruiva com vestido de noite”, criado a partir do quadro homônimo pintado em 1918. Como em todos os textos, Graça Pires exibe refinada criatividade para inventar as histórias de cada uma das mulheres retratadas.

Neste poema, a jovem ruiva é quem fala em primeira pessoa. “Um incêndio atraiu / os meus cabelos em desalinho”, diz. O incêndio, naturalmente, associa-se à cor dos cabelos dela, que parece estar vivendo uma tórrida paixão, com experiências “na margem mais proibida da noite” e também durante a manhã.

“Menina de azul”, texto homônimo de um quadro de 1918, é o próximo poema. Impressionada com o rosto da garota — que é de fato o ponto fulcral da cena —, a poeta considera-o como algo “asfixiado / na moldura do tempo”. Uma infância eterna enquanto durar esse retrato saído dos pincéis de Modigliani.

O poema seguinte, “Mulher com chapéu”, baseia-se no quadro “Retrato de mulher”, de 1917-19. Também neste texto a retratada se exprime em primeira pessoa. Sonhadora, ela explica por que usa a frondosa cobertura para sua cabeça. “Comecei a usar um chapéu de abas / largas para iludir o brilho desmedido / que desliza sobre as coisas”. Mais do que sonhadora, é também dada a arroubos poéticos: “Por isso, apenas posso olhar a lua cheia / como fazem os poetas e as bruxas”.

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O próximo retrato, “Mulher com gravata preta”, foi traçado em palavras por Graça Pires a partir da imagem de mesmo nome, posta em tela há pouco mais de 100 anos, em 1917. Possuída pela ideia da imperenidade das coisas, a dama de gravata pensa em escrever um poema sobre a areia.

Assim como a lenda contada sobre o padre Anchieta, essa mulher entregaria seus dizeres poéticos aos azares da chuva ou das línguas do mar. E é sobre o mar que ela divaga, lembrando a infância, com ondas e veleiros. Mas, diferentemente da mulher com chapéu, ela não sabe ao certo por que começou a usar uma gravata preta.

“Comecei a usar”, diz ela, de forma acertada. Não se pense que amanhã ela poderia aparecer sem gravata, ou com um desses adereços de outra cor. Não: assim como a menina de azul, que será para sempre menina e com vestidinho azul, esta mulher está condenada a usar a mesmíssima gravata preta até o fim dos tempos. Afinal, isto não é cinema, mas fotografia.

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Agora, o último poema, “Jeanne com blusa branca”. Há muito que dizer sobre essa mulher. Trata-se de Jeanne Hébuterne (1898-1920), jovem pintora francesa por quem o coração de Modigliani batia fora do compasso. Esse retrato é apenas um dos muitos que ele pintou da musa, com quem chegou a ter uma filha, Jeanne Modigliani (1918-1984).

Em 1920, o casal teve um fim trágico. Modigliani morreu de tuberculose em 24 de janeiro. No dia seguinte, Jeanne, grávida de nove meses do segundo filho, atirou-se do quinto andar de um prédio. O pintor tinha 35, e ela 21 anos. A filha Jeanne foi criada pelas irmãs de Modigliani.

Mas retornemos ao poema “Jeanne com blusa branca”, baseado num quadro de 1918. Esvoaçante, a personagem criada por Graça Pires se deixa inebriar com a luz: “Abri de par em par as portadas das janelas / para deixar passar a luz deste alvorar ao sul”. Além disso, sente na pele o “veludo dos pêssegos” como prenúncio de “manhãs claras”. Mas não se enganem: nem tudo são idílios. Ela também confessa que sente flutuar no próprio olhar “o pólen da tristeza”.

Cem anos depois das telas de Modigliani, a poeta Graça Pires presenteia, com esses deliciosos e autênticos retratos, a todos os leitores capazes de se emocionar com a língua portuguesa.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Mulheres de Modigliani


• Graça Pires


              



Modigliani - Jovem ruiva com vestido de noite-1918
Amedeo Modigliani, italiano, Jovem ruiva com vestido de noite (1918)


JOVEM RUIVA COM VESTIDO DE NOITE

Um incêndio atraiu
os meus cabelos em desalinho.
Emaranhou-os em estrelas luzentes,
porque vou ao teu encontro.

“O verão começa nos teus braços nus”,
me dirás, na margem mais proibida da noite.

Ai, o rubor do rosto a desvendar
a secreta inocência dos devaneios!
Ai, o lento bailado nas sombras
da madrugada!
Ai, o mel e o néctar na seda de meus seios!

“O verão começa nos teus braços nus”,
repetirás pela manhã.



Modigliani - Menia de azul-1918
Modigliani, Menina de azul (1918)


MENINA DE AZUL

Em todos os relógios
da cidade, os ponteiros
marcam a hora
inesperada da inocência.
Tudo parece perfeito,
excepto o meu rosto
de menina, asfixiado
na moldura do tempo.



Modigliani - Mulher com chapéu - 1917-19
Modigliani, Retrato de mulher (1917-19)


MULHER COM CHAPÉU

Não sei há quanto tempo me ardem
os olhos, quando um bando
de pássaros invade o sossego
da paisagem, como se me ofuscasse
a espessura agitada do seu voo.

Comecei a usar um chapéu de abas
largas para iludir o brilho desmedido
que desliza sobre as coisas.

Os meus olhos, é certo, já não têm
a mesma cor que tinham na infância.
Perderam a transparência e o dom
de fitar o sol sem enceguecerem.

Por isso, apenas posso olhar a lua cheia
como fazem os poetas e as bruxas.



Modigliani - Mulher com gravata preta-1917
Modigliani, Mulher com gravata preta (1917)


MULHER COM GRAVATA PRETA

Se eu escrevesse um poema
havia de fazê-lo sobre a areia,
para que viesse o mar, ou a chuva
exaurir o sentido das palavras.

Houve, na minha infância,
um mar antiquíssimo com barcas
acendidas no meio da noite.
Um vínculo sagrado ou de sangue
me liga à memória das ondas.

Da harpa da lembrança tangem as cordas
mais sensíveis na demanda de veleiros
brancos para incendiar novembro.

Nem sei por que comecei a usar,
quase em sobressalto, uma gravata preta.



Modigliani - Retrato de Jeanne Hebuterne
Modigliani, Retrato de Jeanne Hébuterne (1918)


JEANNE COM BLUSA BRANCA

Abri de par em par as portadas das janelas
para deixar passar a luz deste alvorar ao sul.

Trago no sangue o suco da fruta
a provocar a língua, de outras águas
recordada e o sabor acetinado das romãs.

Trago na pele o veludo dos pêssegos
arredondados na mão antes da boca
e a previsão rigorosa das manhãs claras.

Em volta dos meus ombros sobrevoam
abelhas invisíveis atraídas pela brancura
da blusa, ou pelo lago azul do meu olhar,
onde flutua o pólen da tristeza.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Graça Pires
      •  Todos os poemas:
      in Fui quase todas as mulheres de Modigliani
      Poética, Braga, 2017
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* Manuel Bandeira, “Arte de Amar”, in Belo Belo (1948)
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* Imagens: quadros do pintor italiano Amedeo Modigliani (1884-1920)