Amigas e amigos,
Na edição n. 416, em fevereiro de 2019, esta página recebeu o título
“Versos sobre tela”. Ali juntei poemas de quatro autores escritos com inspiração em pinturas de artistas famosos.
Nesta edição, revisito o mesmo procedimento. Mas agora a abordagem é diferente: os poemas são de uma só autora e os quadros inspiradores também de um só pintor.
Portanto, o que vemos no lado direito desta página resulta de uma parceria entre a poeta portuguesa Graça Pires e o pintor
italiano Amedeo Modigliani (1884-1920).
Graça Pires teve a luminosa ideia de escrever um livro inteiro com poemas baseados em quadros do genial Modigliani. Entre as dezenas, quiçá centenas,
de mulheres retratadas pelo artista, a poeta selecionou 40 e dedicou um poema a cada uma delas. Esses trabalhos estão reunidos em seu livro Fui quase
todas as mulheres de Modigliani, publicado em 2017. Você pode ler/ver ao lado cinco duplas desses retratos-poemas.
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Esta edição do boletim foi organizada com a colaboração da poeta carioca Solange Firmino.
Ela me recomendou a leitura dos poemas "modigliânicos" de Graça Pires, que estão disponíveis no site da autora lusa,
Ortografia do Olhar. Daí me veio a ideia deste boletim.
Solange também me ajudou na seleção dos poemas e, amiga da autora, forneceu-me a foto dela que você vê no alto desta coluna.
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Poeta de impressionante fertilidade, Graça Pires (Figueira da Foz, Portugal, 1946) estreou em 1990 com o volume Poemas e tem dezenas de títulos
publicados. Coleciona também um bom punhado de prêmios literários. Veja aqui a lista
completa de obras e prêmios da autora. Graça Pires é licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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Passemos aos poemas. O primeiro texto pinçado em Fui quase todas as mulheres de Modigliani foi “Jovem ruiva com vestido de noite”, criado a partir do
quadro homônimo pintado em 1918. Como em todos os textos, Graça Pires exibe refinada criatividade para inventar as histórias de cada uma das mulheres retratadas.
Neste poema, a jovem ruiva é quem fala em primeira pessoa. “Um incêndio atraiu / os meus cabelos em desalinho”, diz. O incêndio, naturalmente, associa-se
à cor dos cabelos dela, que parece estar vivendo uma tórrida paixão, com experiências “na margem mais proibida da noite” e também durante a manhã.
“Menina de azul”, texto homônimo de um quadro de 1918, é o próximo poema. Impressionada com o rosto da garota — que é de fato o ponto fulcral da cena —,
a poeta considera-o como algo “asfixiado / na moldura do tempo”. Uma infância eterna enquanto durar esse retrato saído dos pincéis de Modigliani.
O poema seguinte, “Mulher com chapéu”, baseia-se no quadro “Retrato de mulher”, de 1917-19. Também neste texto a retratada se
exprime em primeira pessoa.
Sonhadora, ela explica por que usa a frondosa cobertura para sua cabeça. “Comecei a usar um chapéu de abas / largas para iludir o brilho desmedido /
que desliza sobre as coisas”. Mais do que sonhadora, é também dada a arroubos poéticos: “Por isso, apenas posso olhar a lua cheia / como fazem os poetas e as bruxas”.
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O próximo retrato, “Mulher com gravata preta”, foi traçado em palavras por Graça Pires a partir da imagem de mesmo nome, posta em tela há pouco
mais de 100 anos, em 1917. Possuída pela ideia da imperenidade das coisas, a dama de gravata pensa em escrever um poema sobre a areia.
Assim como a lenda contada sobre o padre Anchieta, essa mulher entregaria seus dizeres poéticos aos azares da chuva ou das línguas do mar.
E é sobre o mar que ela divaga, lembrando a infância, com ondas e veleiros. Mas, diferentemente da mulher com chapéu, ela não sabe ao certo
por que começou a usar uma gravata preta.
“Comecei a usar”, diz ela, de forma acertada. Não se pense que amanhã ela poderia aparecer sem gravata, ou com um desses adereços de outra cor.
Não: assim como a menina de azul, que será para sempre menina e com vestidinho azul, esta mulher está condenada a usar a mesmíssima gravata
preta até o fim dos tempos. Afinal, isto não é cinema, mas fotografia.
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Agora, o último poema, “Jeanne com blusa branca”. Há muito que dizer sobre essa mulher. Trata-se de Jeanne Hébuterne (1898-1920), jovem pintora
francesa por quem o coração de Modigliani batia fora do compasso. Esse retrato é apenas um dos muitos que ele pintou da musa, com quem chegou a ter
uma filha, Jeanne Modigliani (1918-1984).
Em 1920, o casal teve um fim trágico. Modigliani morreu de tuberculose em 24 de janeiro. No dia seguinte, Jeanne, grávida de nove meses do
segundo filho, atirou-se do quinto andar de um prédio. O pintor tinha 35, e ela 21 anos. A filha Jeanne foi criada pelas irmãs de Modigliani.
Mas retornemos ao poema “Jeanne com blusa branca”, baseado num quadro de 1918. Esvoaçante, a personagem criada por Graça Pires se deixa inebriar
com a luz: “Abri de par em par as portadas das janelas / para deixar passar a luz deste alvorar ao sul”. Além disso, sente na pele o “veludo dos
pêssegos” como prenúncio de “manhãs claras”. Mas não se enganem: nem tudo são idílios. Ela também confessa que sente flutuar no próprio olhar
“o pólen da tristeza”.
Cem anos depois das telas de Modigliani, a poeta Graça Pires presenteia, com esses deliciosos e autênticos retratos, a todos os leitores capazes
de se emocionar com a língua portuguesa.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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