Amigas e amigos,
Quem teve a oportunidade de receber alguma orientação sobre a produção de textos certamente foi aconselhado a fugir das repetições. Palavras,
frases ou estruturas repetidas — dirá o professor, com razão — são um sinal de pobreza criativa.
Não há dúvida de que esta observação deve ser levada a sério. Mas também é possível que o mestre se esqueça de ressaltar um detalhe:
bem dosada, a repetição pode transformar-se em poderoso recurso estilístico.
Nesta edição, o poesia.net reúne alguns poemas que assentam suas bases exatamente na repetição. Seus autores são a paulista
Ledusha Spinardi; o baiano Roberval Pereyr; e o cearense Francisco Carvalho.
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Ledusha Spinardi
poesia.net n. 258 (2005)
O poema de Ledusha Spinardi foi para mim o ponto de partida para esta seleção de textos focados na repetição de frases ou palavras. “Há” — título
curtíssimo que deve ser entendido como o início de todas as frases do texto — apresenta um ponto de vista feminino, ou feminista.
Assim, as pessoas descritas de forma reiterada como “Os que” são exclusivamente homens, e não pessoas em geral. A crítica ao machismo revela-se mordaz:
há “Os que espalham o conflito”, “Os que têm presas no olhar”, “Vampiros por trás de lentes”, “Os que decifram. Os que devoram” e até os “Marxistas
que espancam mulheres”.
O poema “Há” saiu originalmente no livro Exercícios de Levitação (7Letras, 2002). Poeta, jornalista e tradutora, Ledusha Spinardi —
no cartório, Leda Beatriz Abreu Spinardi (Assis-SP, 1953) — publicou outros livros de poesia: Lua na Jaula (Todavia, 2018);
Notícias da Ilha - 31 Anos de Poesia (7Letras, 2012); Finesse e Fissura (Brasiliense, 1984); Risco no Disco
(autopublicação, 1981; Luna Parque, 2016); e 40 Graus (Francisco Alves, 1980).
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Roberval Pereyr
poesia.net n. 35 (2003)
Em seu poema, igualmente crítico, o baiano Roberval Pereyr também menciona personagens cuja identificação começa pela expressão “Os que”,
ou simplesmente “Os”. Mas aqui a condenação é geral, não se volta apenas a indivíduos de um gênero.
Contudo, o tom de desprezo é talvez mais forte. Volta-se, por exemplo contra “Os donos do império e da farsa”, “Os falsificadores da falácia”,
“Os enviados para destruir”. O texto execra inclusive “Os sacaneados plácidos”, aqueles que, embora vítimas, aceitam calados as ignomínias
que lhes são impostas.
A conclusão do poema não é nada agradável. Diante de tanta infâmia, o que pode vir? “A certeza de tudo / piorar”. [Isso, óbvio,
só se mantém verdadeiro enquanto os outros — que são a maioria e não estão citados entre “Os que” — não resolverem se libertar dos abusos
praticados pelos “enviados para destruir”. Agora mesmo, no Brasil, temos uma oportunidade concreta de dizer não aos “donos da farsa”.]
A severa “Legião” de Roberval Pereyr (Antonio Cardoso-BA, 1953) foi publicada no livro Amálgama - Nas Praias do Avesso e Poesia Anterior
(2004). Outros livros do autor: Mirantes (7Letras, 2013), Saguão de Mitos (Editorial Cone Sul, 1998); O Súbito Cenário (1996).
Pereyr é poeta, ensaísta e professor de literatura.
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Francisco Carvalho
poesia.net n. 460 (2021) e
poesia.net n. 212 (2007)
Vêm agora dois poemas de Francisco Carvalho. No primeiro, chamado “Aridez”, o núcleo repetitivo é justamente a palavra “árido”, com algumas variações
de gênero e número.
Diferente dos textos anteriores, a aridez de Francisco Carvalho constitui um exercício de criatividade que às vezes beira o surrealismo, como quando
se refere ao “tropel dos escorpiões bailarinos” ou às “árvores de copas de mármore”.
No segundo poema assinado por Francisco Carvalho, “Balada Trágica”, o módulo que se repete é “A que [ou O que] se chamava”. O andamento é de parlenda,
a sequência de rimas para crianças. Com muito bom humor, o texto brinca com nomes de mulheres e homens — e todos morrem num dia da semana.
Desse modo, o poema tem somente sete versos que, como uma metralhadora, executam todos os personagens, um a cada dia.
Somente um deles, Deolindo, subverte a
regra e, em vez de morrer, ressuscita no domingo.
O cearense Francisco Carvalho (1927-2013), autor fertilíssimo, escreveu dezenas de livros, todos de poesia. “Aridez” foi publicado no livro
Romance da Nuvem Pássaro (1998) e “Balada Trágica” vem do volume Barca dos Sentidos (1989). Os dois poemas, no entanto, foram extraídos
da antologia Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos (2004), publicada pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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