Amigas e amigos,
Ainda garoto, li certa vez que alguém era um “burocrata”. Fiquei encafifado com
essa palavra. Como não havia por perto quem me pudesse dar alguma luz, fui ao
dicionário. Mas o pai dos burros não me valeu. Saí da visita talvez menos
esclarecido do que entrei. O problema é que, para explicar uma palavra dessas, o
dicionário recorre a conceitos que eu, menino, não alcançava.
Uma história parecida com essa minha recordação de infância forneceu a ideia inicial para o livro Dicionário de Imprecisões, da poeta mineira Ana Elisa Ribeiro.
No caso dela, o filho adolescente é que teve a experiência com o glossário. Ele reclamou das indefinições encontradas no livro feito justamente para esclarecer.
A poeta colheu aí a centelha para escrever um vocabulário poético livre, cheio de incertezas, hesitações
e muito bom humor.
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A ideia vingou, e como. Entregue ao público em abril de 2019, o livro — a despeito de todos os ventos contrários à poesia — esgotou-se rapidamente. Ganhou agora,
um ano depois, neste abril pandêmico, uma segunda edição, desta vez com lançamento virtual e cumprimentos à distância.
Ao compilar seu tesauro, Ana Elisa Ribeiro deu rédea solta à imaginação e trabalhou com recursos de outras formas de expressão, como a crônica. Assim, os verbetes,
irônicos, especulativos, nem sempre têm cara de poemas. Em alguns casos, confirmando as anunciadas imprecisões, ela inclui mais de uma versão para o
mesmo verbete. Há também, como em todo dicionário que se preza, referências a outros verbetes, citações de livros e mesmo de outros dicionários.
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Na seleção poética desta edição, transcrevo ao lado alguns verbetes do Dicionário de Imprecisões de Ana Elisa Ribeiro. O primeiro é “Aberturas”, caracterizado
como “substantivo feminino de frestas e gretas”. Dito com palavra mais próxima, janelas.
A seguir vem o verbete “Carinho”. Observe o tipo de aproximação indireta. Para chegar à palavra em destaque, a poeta passa primeiro pelo termo “afagar”. Segue-se a definição de “Definição”. Trata-se, de saída,
de uma tentativa “geralmente malfadada”. Mais adiante, o texto indica que os burocratas de plantão alteram definições para “parecer eficazes e competentes”.
Agora, vem o registro léxico para “Imenso”, referência a “algo sem medidas”. Daí o texto avança para termos afins, como “imensurável”, “desmedido” e “desmesura”.
Em “Inspiração”, a ideia básica era de que ir a Paris garantiria ideias maravilhosas, “motivos para versos impressionantes”. Segundo o verbete, não foi bem assim
a experiência da dicionarista.
As definições para “Paixão” são curtíssimas, como a duração do próprio substantivo. Em seguida, a tentativa de dizer o que é “Praça” enreda-se por imprecisões
geométricas e descrições do frenético movimento das ruas.
Para concluir a pequena seleção de verbetes, chegamos a “Ventos” — “substantivo masculino, aqui plural e forte”. A abordagem, mais uma vez, não é direta. Começa com mulheres
se abanando “no calor dos trópicos” e vai até “aqueles servos que viviam a ventilar as damas”. Mas, afinal, o que são ventos? Como se vê, neste dicionário a resposta
é a mais imprecisa que se pode encontrar.
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Nascida na capital mineira em 1975, Ana Elisa Ribeiro é poeta, cronista, contista e realizadora cultural. É também professora e pesquisadora do Departamento de Linguagem
e Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Estreou em poesia com o livro Poesinha
(Poesia Orbital, 1997). Vieram em seguida Perversa (Ciência do Acidente, 2002); Fresta por Onde Olhar (Editorial Interditado, 2008); Anzol de Pescar
Infernos(Patuá, 2013); Xadrez (Scriptum, 2015); Álbum (Relicário, 2018); e Dicionário de Imprecisões (Impressões de Minas, 2019).
Entre suas atividades como realizadora cultural destaca-se o projeto Leve um Livro, concebido em parceria com o também poeta e designer Bruno Brum.
Leve um Livro foi uma iniciativa voltada para a divulgação de poesia que publicou e distribuiu gratuitamente 72 títulos de 73 poetas de todo o Brasil. Os livros,
dois a cada mês, saíram em três temporadas de 12 meses, entre 2014 e 2017.
No total, foram parar nas mãos de leitores belo-horizontinos 180 mil exemplares impressos, que ficavam disponíveis em livrarias, centros culturais e bibliotecas.
Interessados de outras regiões também puderam fazer o download de todos os exemplares da coleção no site do projeto (hoje desativado).
Entre os poetas incluídos na coleção Leve um Livro encontram-se nomes conhecidos dos leitores deste boletim, como
Adriane Garcia,
Edimilson de Almeida Pereira,
Líria Porto,
Mariana Botelho,
Micheliny Verunschk,
Nicolas Behr e
Ricardo Aleixo.
O projeto Leve um Livro teve o apoio da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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